segunda-feira, 20 de maio de 2013

ALAGADOS - LIVRO PELA INTERNET- AUTORIA DE EDUARDO GANTOIS



ALAGADOS

1

Eduardo Gantois

Bel e Cal eram tainheiros da Ribeira. Moravam no antigo bairro do Uruguai, junto ao mar que ali chegava. Nas horas de maré cheia as ondas morriam embaixo de suas palafitas. Quando a maré era de vazante recuava centenas de metros e não se enxergava nem o seu principio. O mangue do outro lado o escondia entre os galhos. Tinham uma canoa, comprada em sociedade. Era a grande ferramenta de trabalho dos dois homens. Quando voltavam da pescaria, se a maré estivesse cheia apoitavam-na junto às suas casas. Estivesse vazia, deixavam-na no canal.

A canoa fora comprada de  um antigo pescador que fazia a travessia Ribeira-Plataforma, transportando passageiros. Tinha 12 metros de comprimento por 1 de largura. Como tal era uma canoa de bom porte e excelente estabilidade. Permitia o arremesso das tarrafas de um na proa e o outro na popa; ambos em pé;  
ao mesmo instante! Ainda assim se mantinha fixa  como se fosse uma palafita com suas estacas.  A bela embarcação possuía duas guarnições de vela. Usavam-nas quando iam pescar em lugares mais distantes, como  Freguesia ou mesmo Maré. Às vezes se aventuravam na Ilha de Itaparica.
Próximo de suas palafitas morava Firmino, um velho pescador. Dizia-se que era do norte do País e teria sido um dos primeiros moradores do local.  Morava sozinho. Ainda pescava com uma pequena canoa. Diferentemente dos dois amigos, a sua canoa vivia amarrada num dos paus de sua palafita. Ele só saia para pescar na maré cheia e voltava ainda em condições de se aproximar de sua palafita.  
Certo dia, Cal e Bel voltando de uma incursão em Ilha de Maré com todas as velas ao vento, depararam-se com a canoa do senhor Firmino virada no Canal da Ribeira e o homem seguro a ela. A correnteza de vazante era forte e ela se distanciava da terra rapidamente.


Aproximaram-se do náufrago e prestaram-lhe socorro. Colocaram-no dentro da canoa e após desvirar a pequena canoa do velho pescador, retirar a agua, amarram-na na popa e seguiram em direção ao Uruguai.

- Como aconteceu isto, senhor Firmino, perguntou Cal?


- Então, vocês sabem quem sou!


- Quem não conhece o senhor no Uruguai. Dizem que o senhor foi um dos primeiros moradores.


- É. Parece que sim, mas depois eu explico isto. No momento, estou precisando tomar uma bebida quente. Vocês devem ter algo. Estou morrendo de frio. Tem mais de uma hora que a canoa virou. Perdi minha tarrafa.


Deram-lhe aguardente. – Essa é das boas, falou Bel, passando a garrafa para o velho pescador.


Ao chegarem em terra, amarraram a canoa de Firmino na sua palafita. Ajudaram-no a subir e quando se preparavam para ir embora, Firmino os convidou para jantar com ele no dia seguinte. Pescaria alguma coisa pela manhã. A maré estaria vazia e ele era um especialista em siri mole. Dava muito ali perto. Considerava uma iguaria.
- Vocês gostam de siri mole? Vocês foram tão gentis. Poderia ter morrido.


- Claro senhor Firmino, mas não se preocupe com isto. Não fizemos mais do que nossa obrigação. São leis do mar.


- Não, faço questão.


- Está bem, a que horas?


- Às  7 da noite: está bem para vocês?


- Está ótimo, estaremos lá como sem falta. Eu me chamo Cal e o meu amigo Bel.


2


A moqueca estava uma delícia. Cal e Bel levaram umas cervejas e o jantar se estendeu  até quase 9 horas. Em seguida, os três homens desceram até uma espécie de píer que a  palafita do senhor Firmino possuía. Uma armação bem agradável.


- Interessante esse píer, senhor Firmino.


É senhor Cal, ajuda a mudar de ambiente. Em vez de ficar socado todo o tempo no barraco, desço até aqui e me espreguiço numa cadeira de lona. Às vezes, durmo e só acordo de manhã, principalmente em dias muito quentes. Vamos conversar um pouco. Ainda é muito cedo. Por favor, pegue duas cadeiras lá em cima. Em me recosto na minha de lona.


- Senhor Firmino, como o senhor veio parar aqui, perguntou Cal?


- É uma longa história. Nasci no Maranhão, aliás, interior do Maranhão. Aos 25 anos fui para São Paulo onde fiquei por 15 anos. Trabalhei em diversas indústrias Em 1940 soube que estava sendo implantado um polo industrial em Salvador, dos mais promissores, principalmente no setor de chocolate. Bahia era a terra do cacau. Fui admitido na Chadler aqui no Uruguai. Aluguei um quarto nas proximidades, mas soube que estavam invadindo o mar com a construção de palafitas. Resolvi também fazer a minha. Estaria livre do aluguel. Já havia meia dúzia delas. Não fui o primeiro. Com o tempo fui melhorando sua estrutura até construir esse pier.  Aposentei-me antes que a Chadler fechasse suas portas, mudando-se para os Estados Unidos. Com com o dinheiro da indenização comprei esta canoa. Comecei a pescar. Praticamente sem despesas, sem pagar luz nem água e o peixe,  o siri e o papa-fumo como alimentos, consegui fazer até uma poupança. Penso em sair daqui e passar meus últimos dias numa dessas ilhas da Baía, possivelmente Maré que é a que mais gosto.


- E o senhor nunca se casou?


- Não Bel. Conheci muitas mulheres em São Paulo, mas não me casei. Sempre vivi sozinho. Já era difícil me sustentar só, quanto mais com mulher.


E vocês, parecem que são casados. Vejo crianças tomando banho de mar em frente às suas palafitas.


- Somos. Minha mulher chama-se Ana Maria e tenho três filhos, Alex, Mauro e Maria, dizia Bel. Já Cal tem um casal. Carlos e Milena. Sua mulher chama-se Angélica. Nossas palafitas foram feitas na mesma época. Morávamos em Maré e víamos pescar aqui na Enseada. Um dia, vimos um grupo de pessoas levantando palafitas que nem a do senhor. Aproximamo-nos e perguntamos como se fazia para obter a licença para construir uma.


- Não precisa de licença. É só trazer umas tábuas e uns troncos por aí e em pouco tempo vocês tem a sua palafita levantada.


Naquela mesma semana, trouxemos tábuas e troncos de Maré e levantamos as nossas palafitas. Na outra semana trouxemos as mobílias e as famílias vieram de barco até aqui. Em Maré também morávamos em palafitas, mas os filhos estavam crescendo e precisavam estudar. Estudavam em São Thomé. Voltavam em barcos que faziam esse transporte. Até hoje tem; não fizeram uma ponte.
- Nossas palafitas são conjugadas. Somos vizinhos de tábua. O que se fala numa casa, ouve-se na outra. Além do som, passa a luz, não é Bel?


- Por essa razão nenhum fala mal do outro e vice-versa. Nossas mulheres se entendem muito bem. Ajudam-se mutuamente. (Risos)


- O que mais o senhor quer saber?


- Nada. Perguntei por perguntar. É normal no principio de um relacionamento. Mas, mudando de assunto, vocês estão satisfeitos com o que pescam?


- Satisfeitíssimos. Dá para todo mundo comer e ainda damos peixes aos pescadores mais idosos aqui do Uruguai que não têm mais condição de pescar. Também ajudamos à Associação dos Moradores do Uruguai, uma entidade presidida pelo senhor Maneca. Por sua vez, ele redistribui o peixe que lhe damos.


- Então, vocês gostariam de pescar ainda mais, não é?


- Claro! Quanto mais, melhor, até certo ponto. Não temos como guardar o peixe. Não possuímos geladeira. Aliás, ninguém aqui do Uruguai possui uma.

- Pois bem! Tenho uma forma de aumentar a pescaria de vocês, forma esta que pensei colocar em prática, mas já não tenho mais idade e seria uma pena que a ideia se perdesse quando eu morrer. Querem saber como?


- Como aumentar a pescaria?! Somos considerados os tainheiros mais bem sucedidos dessa região. Temos uma boa canoa e boas tarrafas. Também temos redes para pescar camarão.

- Não quero subestimar a capacidade de vocês. Mas a forma de pescaria que eu pensava fazer aqui, não tem igual. A maioria dos pescadores de minha terra pesca assim. Aliás, até os índios usam esse sistema. Aliás, o povo aprendeu com eles.


Cal e Bel se olharam um tanto quanto descrentes, mas Bel  resolveu falar: - pode-nos mostrar sua fórmula mágica?


- Vou subir e já trago um desenho que eu fiz. Na volta colocou uma folha de papel em cima da pequena mesinha entre as três cadeiras. Está aí.






- Vou lhes explicar. Chama-se “curral”. É uma rede de espera. Os pontos sinalizam o seu formato. Há uma abertura na parte superior esquerda para entrada dos peixes na maré cheia; em seguida um labirinto para que eles não possam retornar. Aliás, eles não sabem como retornar. No centro, em vermelho, são quatro tanques de água de amianto, enterrados na lama até a boca. São chamados de coração do pesqueiro.  Quando a maré vaza, os peixes não têm ou não sabem como sair. Alguns pulam, mas a maioria se dirige aos tanques que se mantêm com água, afim de não morrerem.  Aí é só catá-los. Simples! Vocês poderão  fazer diversas armações desta ao longo da enseada. É um mar de peixe. Vocês vão ver.


- Mas lá em sua terra pode funcionar e aqui não.


- Vejo aqui as mesmas características de mar que nem na Barra do Maranhão. O mar se descobre centenas de metros. Vira tudo lama, como aqui. Igualzinho!


É, podemos tentar, mas de cara vejo um problema, aliás, um problemão. Não temos dinheiro para comprar redes, paus e tanques. O senhor parece que também não tem.


- Cal e Bel. Não vai ser necessário dinheiro algum. Só  o trabalho de procurar por ai os elementos dessa armadilha.  As redes, por exemplo, o que é o mais caro, poderão  ser encontradas lá pelas ilhas. Redes usadas, imprestáveis, jogadas na areia. Já não servem para pescaria de nenhum peixe. As malhas já não aguentam, mas para nós elas funcionarão. Os paus, temos o mangue à nossa disposição. É só cortá-los e os tanques, possivelmente, podemos achá-los velhos, jogados fora por moradores ou abandonados nas velhas casas.  


A convicção daquele homem impressionava os dois rapazes. O projeto tinha alguma lógica. Resolveram aceitar. Começaremos amanhã. Vamos todos à Ilha de Maré, é um bom começo, eu, Bel e o senhor. Se nada encontrarmos, pelo menos comeremos uma boa moqueca de caçonete ou peguari.


3


Às 6 horas da manhã, já os três amigos estavam viajando na canoa “Ilha de Maré” com todas  as velas que tinha direito. Iam apopados com ventos  leste / oeste. Chegariam a menos de uma hora. Bicaram na praia. Era uma proeza que Cal gostava sempre de fazer. Buscava colocar toda a canoa na areia. Os amigos que já tinham visto a proeza outras vezes, sempre torciam pelo sucesso da manobra. O recorde era de 8 metros. A canoa tinha 12 metros. Daquela feita, tinham igualado a melhor marca. Estava ótimo.


Foi recebê-los o Mestre Ju- Juvenal Aparecido de Jesus com todas as letras e mais uma dúzia de velhos pescadores.


- Já vi que trouxe um amigo para conhecer Maré, apontando Firmino.


- Amigo e vizinho lá no Uruguai.


Abraçaram-se.


- O senhor vai gostar de nossa ilha. Temos a melhor moqueca de caçonete da Bahia. Vou mandar preparar uma para hoje ou vocês preferem peguari?



PEGUARI

- O senhor pode mandar preparara as duas? Assim, senhor Firmino já conhece a dupla.


- Mas, Cal e Bel  que os traz aqui sem me avisar? Deve ser algo importante.


- Realmente, pode ser importante. Estamos precisando de pedaços de rede velha.


É isto que é importante? Tem muitas jogadas por aí. Para que você as quer?


Olhou para Firmino e respondeu: fazer uma experiência.


- Ah!


O velho mestre merecia confiança, mas tinha muita gente ouvindo a conversa. Tinha que manter segredo. Depois, em particular, diria a ele.


Logo em seguida, começaram a andar pela ilha e, efetivamente, encontraram diversos pedaços de rede, muitos até ainda usáveis. Foram colocados na frente da canoa, após a segunda vela.  Em seguida almoçaram com o velho Ju. Como sempre as moquecas estavam uma delícia. Firmino elogiou-as diversas vezes. Não sabia dizer qual era a melhor.


 Depois de um breve descanso, Cal e Bel resolveram fazer a viagem de volta.  Seria mais demorada. 

Tinham o vento e a maré de enchente contra eles. Os pedaços de rede como que diminuíam a velocidade da embarcação. Tiveram que cambar várias vezes, ora iam até perto de terra, ora iam até o canal lá fora.


- Estou preocupado sobre aonde colocaremos tanta rede, senhor Firmino.


- No mangue Bel. Dentro do mangue. Faremos rolos e os colocaremos entre os galhos. Enquanto isto, já cortaremos algumas dezenas de troncos e também faremos feixes que amararemos com pedaços de rede. Também ficarão dentro do mangue. Após isto, vamos ver se achamos algum tanque velho. Certamente iremos achá-los, principalmente em casas abandonadas.


- Boa ideia. Não havia pensado nisto. Tem gente que não leva o tanque para nova moradia, nem os ladrões costumam roubá-los. Levam tudo, chumbada, pias e vasos, mas sempre deixam os tanques nos seus lugares. Encontraram diversos tanques e até uma banheira de bom tamanho. Colocaram-nos na praia e em seguida para onde seria o centro do curral. Foram enterrrados até a boca.
 No dia seguinte Cal e Bel foram pescar. Já estavam precisando. À noite, os dois amigos, mais Firmino, começaram a cortar os pedaços de paus. No dia seguinte, a mesma coisa até que no fim de semana, uma sesta feira, deram por satisfeitos. E era. Em seguida, foram transportados na canoa Ilha de Maré. Enterraram-nos até a boca, deixando uma pequena parte exposta. No domingo à noite, maré totalmente vazia, resolveram montar o curral com a boca no canal e o resto onde a maré vazava totalmente. Os tanques ficaram mais ou menos centralizados. Foi rápido o serviço e tinha que sê-lo, antes que a maré voltasse a encher. Agora era só esperar. Retornaram às suas residências e ansiosos quase não dormiram. De vez em quando um deles olhava o mar. Quando vazou totalmene os três homens se dirigiram até próximo ao curral. Felizmente havia uma trilha arenosa até bem próxima ao pesqueiro, senão teriam que andar duzentos a trezentos metros na lama. Caminharam em silêncio. O único meio de comunicação era o olhar de um para outro. Dava para ouvir a respiração dos três homens. Faltando algo em torno de 10 metros, instintivamente deram-se as mãos. Depois se soltaram repentinamente quando viram um peixe pular de dentro de um dos tanques para fora. Correram! Os dois tanques estavam cheios até a boca de muitos peixes. Correspondia a uns trezentos a quatrocentos quilos de peixe de toda a natureza. Ainda tinham muitos mortos na lama e outros presos nas malhas da rede. Aos pulos, abraçaram-se. As lágrimas vieram aos olhos de Firmino. Os dois rapazes gritavam ao vento. Conseguimos! Conseguimos! Firmino, conseguimos!


- Tinha certeza, mas esquecemos de uma coisa muito importante.


???


- O que fazer com tanto peixe. Devíamos ter pensado nisto. A culpa é minha. Se tinha certeza, deveria ter providenciado.


- Providenciado o que homem?


- A colocação desse peixe em lugar seguro, refrigerado. Vamos perder quase todo ele. Tive uma ideia. Vamos para terra. Chamaremos um taxi. Vamos até a Calçada. Lá tem diversos frigoríficos. Esse peixe tem que ser recolhido imediatamente, antes que o sol esquente os tanques.


Localizaram três frigoríficos, um do Estado e dois particulares. O do Estado foi logo descartado. Deveria haver muita burocracia. Nota Fiscal, essas coisas. Dirigiram-se para os outros dois. Logo no primeiro, encontraram grande receptividade.




- Vocês têm peixe em quantidade? Era um velho negociante espanhol.




- Temos cerca de 400 a 500 quilos de peixe, hoje e agora ou algo aproximado para mais ou para menos.


- Não estou acreditando. Em Salvador?




- Como em Salvador? Aqui não há peixe?




- Peixe há. De tainheiros; pequenas quantidades. Vendem-nas de porta em porta ou quando encostam as canoas junto ao cais. 




-E o seu frigorífico, o que armazena?




- Só carne e frango. Estamos usando apenas 20% de sua capacidade de 50 toneladas.




Este homem não deve estar satisfeito com seu negócio. Ele deve estar prestes a fechar esse frigorífico, raciocinou Bel. Acho que chegamos ao momento certo, na hora “h”. É agora ou nunca! É preciso pensar grande.




- O senhor quer vender seu frigorífico? Podemos pagar em peixes. Os de hoje já serão dados como entrada.  Como disse são perto de 500 quilos das mais diversas espécies. Tainhas e robalos, principalmente.  O senhor compra por 5.00 ( é o nosso preço) e vende talvez pelo dobro. Só precisamos de uma pequena quantidade para nossas necessidades e doações que sempre fazemos aos pescadores idosos.  De resto lhe forneceremos durante os próximos 20 dias, mais ou menos, quantidades semelhantes ou aproximadas de hoje. Poderemos estipular um máximo de dez mil quilos o que vai dar um total de cinquenta mil. Em troca ficaremos com o frigorífico e um caminhão. O senhor dever ter um caminhão frigorífico?




- Tenho. Fechado! Preciso ir embora para a minha terra. Sou da velha Galícia. Os senhores chegaram em boa hora. Já ia fechar o frigorífico. Não estava dando lucro.




 Há muito tempo que o espanhol estava querendo vender o frigorífico. O máximo que tinha achado foi trinta mil. Já estava no prejuízo. Já era muito velho. Só tinha um funcionário, o motorista que também cuidava do frigorífico.




- Temos que ir agora. Nós mesmos carregaremos o caminhão. Os recibos, essas coisas, depois com calma, a gente acerta. O senhor deve ter balança. Um de nós, juntamente com o senhor, acompanhará a pesagem, mas confiamos na sua pessoa.


- E esse peixe está bom? Perguntou o espanhol.


- Os peixes estão vivos, mas o sol pode matá-los até o meio dia.


???


O carrego foi feito com muito esforço de Cal, Bel e o motorista, mas tudo correu bem. Em menos de duas horas, todo o peixe fora carregado. Firmino fora poupado. Não era serviço para ele.  A grande maioria era realmente de tainhas e robalos, mas havia pescadas, garoupas e até chicharros olho de boi. À noite, os três voltaram a se reunir no píer da palafita de Firmino.


-- Vocês precisam regularizar uma firma imediatamente. Emitir nota fiscal, essas coisas. Vão ser 20 ou mais dias de circulação desse caminhão. Tem muito fiscal naquela região da Calçada.


- Firmino, o senhor está falando como se a responsabilidade fosse toda nossa. Porque o senhor não diz “nós precisamos” e sim “vocês precisam”?


- Meu trabalho neste negócio encerra-se aqui. Já estou velho. Preciso descansar. Vou comprar uma casa em Maré e morar lá. Gostei do lugar. Da moqueca de peguari, então, me dá água na boca.


- O que? O senhor não quer participar de nosso negócio? Não acredito! A ideia foi toda sua.


- Acredite sim. Não me casei. Não devo ter mais parentes. Se ainda tiver, sou um estranho para eles. Agora eu quero é toda paz do mundo. Estou contente em ter podido ajudar vocês que agora são meus amigos. Vocês devem seguir em frente sem a minha pessoa. Acreditem!


- Não, não, não... gritou Bel.


- Sim, sim, sim, confirmou Firmino.


- Me dê um abraço. Só quero isto. A vida é de vocês. Estarei sempre por perto. Era um vaticínio.


4


Um contador fora contatado imediatamente e em poucos dias fora conseguida uma inscrição provisória. Os 20 dias passaram rápidos. Cal e Bel se revezavam. Ora um estava no frigorifico e o outro na entrega dos peixes. O motorista era o mesmo.  Foram contratados dois homens para apanha dos peixes e dois outros para o frigorífico. Enquanto isto, o espanhol já havia marcado sua viagem de volta para a sua terra.  


Vale contar como foi escolhido o nome da firma de Cal e Bel para efeito de registro definitivo. Inicialmente pensaram no nome URUGUAI DISTRIBUIDORA DE PEIXES LTDA., em homenagem ao bairro onde moravam. Sem dúvida um bom nome. Foram consultar Firmino.


-
Realmente é um bom nome, mas porque vocês não usam os nomes de vocês dois e formem outro nome.  Por exemplo, CALBEL e acrescente a sua finalidade, INDÚSTRIA DE PESCA . Simples!


- Bom nome seu Firmino, mas está faltando FIR de seu nome. Mesmo que o senhor não queira participar da sociedade, é justo que se inclua suas letras.


- Cal. Vou provar que ia ficar horrível. Vamos pegar a junção de seus nomes e acrescentar FIR. Iria ficar FIRCALBELL. Horrível! Agora vamos colocar o FIR no fim da junção: CALBELFIR. Pior! Como vocês veem, até no nome eu estou certo em não participar, mas, acreditem, estou muito feliz. Minha decisão foi acertada. Este mar é de vocês. Eu sou um intruso.


No dia seguinte, levaram o nome para o contador que achou interessante. As primeiras letras dos nomes dos sócios e a finalidade bem explicita do negócio.  Só faria uma pequena mudança. Mudaria o C de Cal para K de Kal. Ficaria KALBEL INDÚSTRIA DE REDE DE ESPERA LTDA.- Fica mais forte. Os nomes com K são muitos fortes.


-Então, agora me chamo Kal e não Cal. Gostei. Aprovado, não é Bel.


- Claro que sim, aprovado. Não dá para colocar mais um L no meu nome BELL. Ficaria KALBELL.


- Sensacional. Ficou ainda melhor, respondeu o contador. Parece um nome inglês. Essas pequenas coisas impressionam o público.


Enquanto isto foram construídos dois novos currais. Esses já possuíam um coração maior. Tinham três tanques cada um. Também se fez uma novidade. Foram plantadas pequenas mudas de mangue dentro do espaço cercado pelas redes, bem como foram jogados aleatoriamente, pedaços de pratos quebrados para atrair maior número de peixes. Nesta última providência se inspiraram na pesca com manzuais, também uma pesca de espera. A brancura  e o brilho dos pratos atrairiam os peixes.


Como resultado, a produção de peixes já beirava uma tonelada dia. A quantidade adiantou o pagamento do frigorífico e a Kalbell começou a faturar por conta própria. Foi contratado um vendedor externo para o serviço de vendas às peixarias e uma moça para o serviço interno de escritório. Cal e Bel se revezavam. Ora estavam nos currais, ora no escritório.


De relação a Firmino, este já tinha se mudado para Maré e, segundo se soube, (mestre Ju esteve em Salvador), teria construído uma palafita na ilha. Algo inovador. Os dois amigos, todo mês, mandavam para ele 1% do faturamento em meio a protestos por telefone.


Com seis meses de funcionamento, a Kalbell possuía uma belíssima e extraordinária conta nos bancos. Trabalhavam com três deles. Constantemente, eram visitados por seus gerentes com propostas de investimento e seguros.


Não decidiam nada antes de ouvir o contador que se tornara um amigo. Fizeram-no um convite para ser o gerente de finanças da nova empresa. Ernesto aceitou, este era o seu nome. Por sua vez ele contratou mais um funcionário. Agora era uma moça e um rapaz, ambos moradores do Uruguai. Cal e Bel insistiam que fosse gente do bairro.  Também fora contratado um Gerente Comercial que, por sua vez, precisou de mais um vendedor. Chamava-se Otávio. Também do bairro. Cal e Bel se revezavam ora no escritório onde tinham uma sala bem organizada e no mar junto com  dois homens que atuavam numa lancha, comprada à vista. Esses homens também ajudavam no carrego dos peixes.
 Ficaram ricos em pouco tempo, mas em nenhum momento esqueceram-se dos velhos pescadores do Uruguai e comunidades vizinhas. Faziam generosas doações a entidades filantrópicas que a todo o momento os procuravam. Continuaram morando nas suas antigas palafitas, naturalmente agora já aumentadas e melhoradas. Já eram de alvenaria. De relação aos filhos, claro que passaram a estudar em escolas particulares. As esposas dirigiam a distribuição dos donativos junto com a paróquia local e a Associação dos Moradores do Uruguai, dirigida pelo senhor Maneca.


Certo dia, o contador alertou Cal e Bel de registrarem a indústria no Ministério da Pesca. Era uma obrigação que ainda não tinha sido cumprida. Também era necessário uma  licença da Marinha conseguida rapidamente.


Em determinado sábado, Bel recebeu uma ligação de Maré. Era de Firmino.


- Preciso falar com vocês. É coisa urgente! Venham amanhã como sem falta. Estarei preparando uma moqueca de caçonete. Vocês vão adorar. Venham sós. Não terão tempo de dar assistência aos filhos.


- Se é urgente por que não nos diz logo do que se trata?


- Só pessoalmente. Estou desligando.


- Compadre, deve ser coisa séria pra o Firmino está nos chamando assim tão de repente.


Acordaram cedo e ajeitaram as velas da velha canoa. Há muito que não a usavam. As duas peças davam um charme todo especial ao conjunto. Pegaram dois cestos e uma rede de malha miúda. A idéia era antes passar em Freguesia e pescar algum camarão e siri mole para presentear o velho mestre. Este último era o crustáceo que ele mais gostava. Por outro lado, sentiam necessidade de pescar. Estava fazendo falta. Até a cor das suas peles tinha mudado. Eram mais brancos. Tinham agora cabelos bonitos, bem penteados. Pareciam outras pessoas.


O vento  facilitou a viagem. Viajaram apoupado quase todo o tempo. Chegariam em menos de uma hora se fossem direto para Maré, mas como se disse tinham que passar em Freguesia. Como sempre, Freguesia estava uma beleza. Nas bordas da Mata Atlântica, lá estava o imponente e belo palacete Wanderley de Pinho. Parecia abandonado. É de se imaginar que ao tempo de sua construção este local era maravilhoso. Tinha um engenho de açúcar.






Engenho da Freguesia e a Capela de Nossa Senhora da Conceição


Rapidamente conseguiram pescar uns cinco quilos de camarão de bom tamanho e três dúzias de siri mole.  Amararam os cestos na popa da canoa e os afundaram. A idéia era chegar à Maré com eles ainda vivos. Levantaram os panos das velas e seguiram em direção à ilha ali próxima. O velho Firmino, acompanhando pelo mestre Ju, já os esperava na praia. Sem aliviar embicaram na areia mais da metade da canoa sobre risos dos dois amigos.


- Os vi de longe. Como corre esta canoa! E como é bela!




- Grande Firmino. Acho que a ilha o remoçou, falava Bel com a aprovação gestual de Cal. Abraçaram Juvenal que era todo risos, uma simpatia.


- Vocês é que estão bem. Eu já caminho para o fim da vida, mas estou feliz. Realmente, a ilha me fez muito bem. Também só como peixe.


- Mestre, o senhor está com que idade?


-64


- Sinceramente, não parece. Quem não lhe conhece bem vai lhe dá 50 anos.


- Bondade de vocês. Como sempre, muita bondade.


- Trouxemos uns camarões e siris moles para o senhor.


- Vocês não têm jeito. Vamos para a nossa casa de mar.


- Casa de mar?


- Sim. Os ricos não têm suas casas de praia porque juntas a elas? Da minha parte, tenho minha casa de mar, porque junto a ele.


Chegaram à casa de Firmino. De fato era uma casa de mar. Lembrava mais um quiosque do que  uma palafita; aliás, estava muito longe de ser uma palafita. Fora feito um acesso de madeira ligando a terra ao quiosque. Firmino convidou os dois amigos para conhecê-la. Da mesma forma que em Itapagipe, o quiosque tinha um pier de bom tamanho. Cabia mesas e cadeiras.






- Antes do caçonete, vocês vão comer meus carapicus fritos. Eu mesmo os pesquei aqui do píer. Aliás, além dos carapicus, pesco siris e agulhas. Essas eu pesco de noite. É só acender um fifó e as bichinhas são atraídas pela luminosidade. Com um jereré de cabo comprido é só abafá-las. Também comprei umas cervejas.


- Mestre isso mais parece uma festa, manifestou Bel, surpreso. Afinal de contas o porquê do seu chamamento mais do que urgente?


- Primeiro, vamos tomar a nossa cerveja e comer nossos peixinhos. Depois lhes falo do que se trata.


- Já que é assim, vou cozinhar uns camarões. Era a vez de Cal ajudar na preparação do “evento”.


Após os tira-gostos Firmino resolveu explicar a razão do convite.




5

- Chamei-os aqui para lhes informar que a Prefeitura vai aterrar grande parte da Enseada dos Tainheiros, a partir da Bacia do Uruguai até Maçaranduba. São perto de três quilômetros ou mais, na paralela da Avenida dos Mares e do Caminho de Areia, até quase o Largo do Papagaio.


- Mestre quem lhe informou isto?


- Bel, gente do governo.


- Como gente do governo?


- Como vocês sabem todo fim de semana chegam a Maré lanchas de Salvador, muitas delas pertencentes a pessoas do governo. Foi uma dessas pessoas que, em conversa com o Mestre Ju, informou-o do grande aterro.  Ai este me passou a informação, sabendo como sabe que eu morei no Uruguai e tenho muitos amigos no bairro.


- Mas como é que pode?


- Pode Bel. Sempre pôde. Desde o momento que eles nomearam Itapagipe como Pólo Industrial de Salvador o fluxo de trabalhadores vindos do recôncavo aumentou consideravelmente e toda essa gente está precisando de moradia. Antes que executem uma grande invasão do mar com mais palafitas, o governo se antecede, financiando ou mesmo dando de graça, casas em terra firme. É um jogo político de grande efeito para ganhar as próximas eleições.


- Mestre como conseguirão aterrar uma área tão grande? No local não tem areia nem barro. Só lama.


A areia virá do outro lado da peninsula. Hoje tem grandes escavadeiras e a areia será remanejada por tubos flutantes. e o barro virá tanto do Barreiro no Bonfim quanto da Fonte Nova, ali no dique do Tororó. 


- E aí, o que fazemos. Temos condições de impedir ou o senhor vai sugerir que já nos mudemos?


- Nada disso meus amigos. Mais do que nunca vocês irão ficar lá. Não é justo que vocês saiam da beira do mar. Ali é o sustento de vocês e de suas famílias. Para tanto eu tenho um plano.


- Plano?


- Sim, um plano de “vida”.


- É o seguinte. Vocês já fizeram alguma placa indicativa que ali funciona uma indústria de pesca?


- Ainda não, respondeu Cal.


- Vocês vão colocar duas ou mais placas indicando isto. Por exemplo: KALBELL – A INDÚSTRIA DO BAIRRO DO URUGUAI ou KALVBELL O ORGULHO DO BAIRRO DO URUGUAI. Coisas assim, bem chamativas.


- Mas para que isto Firmino. É mesmo bem chamativo.


- Chamativo e necessário. Vocês precisam caracterizar que aquela área onde estão os currais é de vocês. É uma industria de pesca em pleno funcionamento.


- Como assim e por quê?


- Também estou sabendo que a Prefeitura vai respeitar a atual propriedade das pessoas no local aterrado, seja residência ou negócio. Quando aquilo for aterrado, a área passa a pertencer a vocês.


- Mas os currais não seriam uma coisa ilegal e como tal não poderiam ser considerados uma propriedade?


- Nada de ilegal. Fora registrado no Ministério da Pesca e da Marinha. Nem as palafitas são ilegais. Elas são uma manifestação de um grande problema social que é a moradia.  Agora vamos comer o nosso cação. Vou subir para esquentá-lo e já desço.


- Mas mestre será uma pena que isto aconteça. As possibilidades de negócio são extraordinárias. O dinheiro entra praticamente à vista. Salvador não tem uma indústria de pesca. Só a nossa. Todo o peixe que é aqui comercializado vem de fora. O custo do frete encarece muito o produto.  Isso nos proporciona uma margem operacional excelente.


- Tudo bem, mas insisto que o negócio maior será o condomínio que se fará se lhe for dada a posse da propriedade. É só esperar. Tenham calma! Vão levando o barco até esse dia. Mas, espere ai. Acabei de ter uma idéia apaziguadora desse conflito. Vamos engrossar este caldo. Se realmente vocês estão gostando tanto desse negócio e já lamentam perdê-lo, posso lhes sugerir que poderão fazer outros currais em outros locais, tão bons ou melhor que o atual. A experiência já está ao lado de vocês.


- Mestre, que locais?


- Por exemplo, Saubara, Cabuçu ou Bom Jesús. Nesses localidades acontece o mesmo fenômeno que acontece no Uruguai. A maré na vazante descobre grandes faixas de areia ou lama. E ainda tem um detalhe muito importante: são zonas talvez mais piscosas do que a Bacia do Uruguai. Por outro lado, a Prefeitura de Santo Amaro a qual pertence essas localidades, deverá prestigiar com muito bom gosto essa iniciativa empresarial. Representaria renda para o município e emprego.




- Mestre, o senhor não existe. Que idéia maravilhosa! Vou marcar uma audiência com o prefeito de Santo Amaro ainda esta semana. Antes, passarei em Saubara para ver o fenômeno da maré vazante. Esta semana, ela está em baixa pela manhã. É dia de Lua Cheia.


Bel e Cali viajaram na quinta feira para Santo Amaro. A audiência foi marcada para as 15 horas. Daria tempo de dar um pulo em Saubara.  Confirmaram que, efetivamente, a maré na vazante descobria grande faixa de lama e areia, igualzinho ao que acontecia no Uruguai. Também se cientificaram junto a pescadores que o local tinha muito peixe, inclusive cação e caçonete. Almoçaram uma moqueca de siri mole. Um manjar. Só existe na Bahia e por volta das 15 hóras eram recebidos pelo prefeito de Santo Amaro. Expuseram seu plano e obtiveram do Alcaide a promessa de apoio.


Nos trinta dias que se seguiram Bel e Cal só se preocuparam com a instalação do curral de Saubara. Diferentemente do que aconteceu com a instalação do curral do Uruguai, o cercado recebeu só redes novas. As varetas de apoio também foram diferentes. Eram de cedro por ser a madeira mais resistente à água salgada. Outra modificação que fizeram questão de introduzir no novo curral foi o formato dos tanques para constituir o coração do curral. Encomendou um conjunto que superpostos, tinha exatamente o formato de um coração. E em dia aprazado o curral foi inaugurado com a presença de grande público, vereadores e, naturalmente, o feliz prefeito da cidade que, na oportunidade, se lançou candidato a Deputado Federal nas próximas eleições. Também foi inaugurado um frigorífico com a capacidade de armazenagem de 50 toneladas de peixe, podendo ser ampliado para 100. As perspectivas eram excelentes. Ia atender a todo o recôncavo e até mesmo Feira de Santana.


Nessa noite, Bel, Cal e Firmino fizeram questão de dormir em Saubara para ver “in loco” o resultado da primeira vazante que aconteceria de madrugada. Maravilhoso! Quase uma tonelada de bom peixe. Muitos caçonetes, robalos e curimãs das grandes. Os dois amigos voltaram para Salvador, felizes e mais tranqüilos. Agora tanto fazia ter ou não aterro. Firmino seguiu direto para Maré. Também estava feliz.


E o tempo foi passando e nada de aterro. Já se desconfiava que não houvesse aterro nenhum. Teria sido um blefe.  Por outro lado, a próxima eleição a ser realizada ano seguinte adiaria ainda mais a sua execução.


Enquanto isto os dois amigos foram ficando ainda mais ricos. Suas contas bancárias já chamavam a atenção dos gerentes de bancos.  Já eram tidos como clientes Vips.


De relação aos currais, os mesmos foram ampliados. Agora eram oito. Triplicava a colheita de peixe. Por outro lado, dava uma maior amplitude à propriedade da Kalbell. Fora mais uma recomendação de Firmino.  


Tanto Bel como Cal construíram casas de praia. Bel em Maré e Cal em Itaparica. Também ambos compraram lanchas e nos fins de semana os dois e suas famílias se dirigiam para estas localidades. O curral do Uruguai já tinha um Gerente Industrial e diversos funcionários. Foram comprados mais dois veículos frigorificados. Agora a frota possuía três caminhões para o transporte em Salvador. Em Saubara onde a distribuição era mais espalhada, indo até Feira de Santana, eram cinco veículos.




6



Passaram-se quatro anos até que um belo dia apareceu uma carreta da Prefeitura e despejou sua carga na beirada do mar, próximo às casas de Cal e Bel. Puro lixo. Começava o aterro do Uruguai. Daí em diante, dia e noite, o aterro foi avançando e já alcançava as redes do curral.


Ligaram para o mestre Firmino.


- O que fazer agora?


- Contrate um bom advogado. Promova uma reunião na Associação dos Amigos do Bairro do Uruguai. Coloque faixas nas principais ruas convidando o povo.


- Para que isto Firmino. O senhor não nos disse que a posse do espaço era legal? Automática?


- Continua legal, mas vocês sabem como é  a política. As coisas podem mudar. É preciso causar impacto. Algo que chegue ao conhecimento da imprensa. Drama social, essas coisas.



- Que dizeres colocaremos nas faixas?



A PREFEITURA CONTRA O URUGUAI – ESTÃO ATERRANDO NOSSA INDÚSTRIA – ESTÃO ACABANDO COM O “ORGULHO” DO BAIRRO DO URUGUAI – COMPAREÇAM À NOSSA REUNIÃO- DIA TAL- HORA TAL., por aí...


Na hora e dia tais, Cal discursou para uma grande platéia reunida na sede da Associação. Tinha um surpreendente desembaraço para falar. Bel estava a seu lado.


- A única indústria do bairro está sendo destruída com lixo. Estão preferindo lixo a uma indústria que era o orgulho do bairro. Ela proporciona emprego para muitos dos senhores Não podemos ficar parados. Isto é um abuso de poder.


Depois foi a vez de o senhor Maneca falar. Era um bom orador. Enfatizou as doações de peixe que os moradores recebiam, tanto diretamente quanto através da Associação.


- Querem nos matar de fome! Querem nos envenenar com este lixo. Dele haverá de se desprender gás tóxico. Estão destruindo nossas moradias.


Depois discursou o vereador Demóstenes, o Demostinho, como era mais conhecido.



- Fiz tudo na Câmara para impedir esse aterro. Estão cometendo um crime contra a propriedade privada. Haveremos de defender nossos direitos até a morte.


Resolveram procurar o advogado para ver o que se faria.



-Tenham calma! Não havia necessidade das reuniões que vocês fizeram. Ao que tudo indica, a Prefeitura vai respeitar o direito de posse, tanto residencial quanto comercial. O que se precisa fazer é definir o tamanho de cada posse. De relação às casas ou palafitas, essas dimensões são bem claras e definitivas. Preocupa-me a determinação do tamanho dos currais e a área abrangente, isto é, o alcance do sistema de pesca. Faz-se necessário marcar este espaço de alguma maneira. Vocês têm uma ideia como isto poderá ser feito?


- Um momento, doutor, vou ligar agora para o Firmino. Ele conhece isto aqui melhor do que ninguém. Talvez ele dê uma ideia, agora mesmo.



Explicaram o que estava acontecendo e de pronto Firmino sugeriu sinalizar toda a área com placas indicativas e bandeirolas de pano com o nome da empresa desde as palafitas até as partes mais ao largo dos currais e até às palafitas.  


-Boa ideia, exclamou o advogado. Façam isto imediatamente. Tirem fotos e as traga aqui, se possível amanhã. Entrarei com uma petição no Departamento de Obras da Prefeitura, informando o tamanho do espaço delimitado e a quem pertence. Preciso do CPF de vocês e uma xérox de suas carteiras de identidade.


Certo dia, Cal percebeu a presença de pessoas ligadas à Prefeitura rondando a área. Parecia que estavam concentrados justamente no espaço onde foram os currais. Faziam medidas. Anotavam. Usavam aparelhos de topografia e fitas métricas.


Uma semana depois, receberam uma correspondência da Prefeitura entregue na sede da Associação dos Amigos do Bairro do Uruguai que não foi atingida pelo aterro. Belarmino Alves e Calixto dos Santos estavam sendo convidados a comparecer à Prefeitura, Departamento de Obras Públicas. 


Tomaram um choque. De imediato ligaram para o advogado.


- Certamente, eles querem conversar. Saber o que vocês pretendem fazer com aquela área. Possivelmente não permitirão a instalação de indústrias, nem mesmo a de pescas como era a de vocês, algo por aí, tenho a impressão. Estou sabendo que neste espaço que vai até a Maçaranduba, eles querem a construção de casas.


Foram recebidos pelo diretor. – Os chamei aqui para lhes comunicar que vamos iniciar a urbanização e como os senhores são os proprietários da maior área, preciso lhes dar ciência de nossos planos. Precisamos que se construam no local muitas casas. Esta foi a finalidade do aterro. Como os senhores devem saber, sofremos forte campanha na Câmara e, consequentemente, na imprensa, contra esse aterro. Dizíamos que a idéia era a construção no local de muitas residências a fim de diminuir o débito habitacional. A oposição contra-atacava dizendo que só daqui a 50 anos esse débito seria equacionado e se o fosse, seria com barracos da pior qualidade. A Prefeitura não tem recursos para fazer coisa nenhuma. O orçamento estava estourado, essas coisas. Efetivamente, falta-nos recursos para construir as casas. Daí estarmos precisando da iniciativa privada para tanto. É o caso dos senhores que sabemos terem recursos para “topar” esta parada. Outro empresário, dono de uma indústria no Largo do Papagaio já assinou um convênio conosco. Vai construir mais de mil casas populares. No caso dos senhores, quantas pretendem construir?


- Bel e Cal entreolharam-se, mais o advogado e Bel falou: mais ou menos a mesma coisa. 



- Ótimo! Então, vocês vão precisar de mais terreno. Façam uma petição requerendo mais espaço. Serão imediatamente atendidos Outra informação, já ia me esquecendo. O Banco do Brasil e alguns bancos particulares já assinaram convênios com a Prefeitura para custear a construção, caso os senhores necessitem de mais capital.




Os dois amigos e o advogado entreolham-se surpresos. Quase não estavam acreditando no que estavam a ouvir. Tanto esquema, tanta preocupação com marcações e os homens estão dando de graça mais terreno. Era inacreditável. Ligaram para Firmino.


- Firmino não lhe conto. Somos proprietários de grande faixa do aterro que fizeram. Compreende a área onde funcionavam os currais até junto às nossas casas e ainda cederam mais outro espaço igual ou superior ao que tínhamos. Somos os donos do Uruguai.



- Isto merece uma comemoração. Vamos tomar uma cerveja no primeiro bar que encontrarmos. Era Bel, o mais eufórico, ao saírem do gabinete do diretor.




7



A semana seguinte foi dedicada a reuniões com o contador e o advogado. Este já prepara a petição solicitando mais espaço para o condomínio, conforme sugerido pelo executivo da Prefeitura. Também houve reuniões sucessivas com o arquiteto e o engenheiro encarregados da obra. Foram os mesmos que projetaram e construíram a casa de praia de Cal em Maré e em seguida a de Bell em Itaparica. Marcelo e Ângelo tinham escritório de arquitetura e engenharia no Comércio.


Os dois amigos gostariam que as casas fossem da melhor qualidade possível. Seriam casas populares é verdade, mas teriam que ser agradáveis. Todas teriam um pequeno quintal para uma mini-horta e criação de frangos. Teriam dois quartos, sala, cozinha e demais dependências. Uma boa casa, assim queria a Prefeitura.


15 dias após os engenheiros apresentaram o projeto do Condomínio Uruguai e Jardim Cruzeiro.  Cal e Bel gostaram do que viram e aprovaram.


- Qual será o custo de construção de cada casa? Perguntou Bel.


-Em torno de 15 mil reais, mais ou menos. Os senhores poderão vendê-las entre 50.000 a 60.000 ou até um pouco mais, mas isto é decisão que lhes cabem. Esse é o preço de residências nas proximidades. Serão financiadas em longos meses. Os bancos tratarão disso.


- Quantas casas serão construídas?


- Inicialmente quinhentas. Depois mais quinhentas.


Enquanto isto, o contador já fazia os primeiros contatos com os bancos e efetivamente havia uma carteira disponível para esse tipo de investimento. Era só estimar. Havia também outra boa notícia. Os bancos fariam todo o trabalho promocional nos meios de comunicação e a negociação das casas seria feita pelos próprios bancos.


E assim nos próximos 18 meses se construíram os dois condomínios, inicialmente com 500 casas, Foi inaugurado com grande pompa em 2 de julho daquele ano, data magna da Bahia. A solenidade foi realizada na parte da tarde, desde que, pela manhã, se realizava o desfile do Caboclo.


Das quinhentas casas construídas, 25 foram reservadas. Uma seria ofertada ao seu Maneca; outra a Firmino; uma terceira ao contador; uma quarta para o advogado como pagamento de seus serviços e duas para cada um dos filhos de Bel e Cal e o restante à construtora encarregada, também como pagamento. Esta, por sua vez já iniciara a construção da segunda etapa de casas, possivelmente também quinhentas unidades.


Desse dia em diante, Bel e Cal foram morar em definitivo nas suas casas de praia, uma na Ilha de Maré e a outra em Itaparica. Os meninos ficaram morando no condomínio por causa dos estudos. Os filhos de Bel ficaram numa mesma casa e alugaram as outras duas com divisão entre si do rendimento. Também os filhos de Cal ficaram juntos e alugaram a segunda casa, também com divisão de rendimento. Nos fins de semana a partir da sesta-feira de tarde, os filhos de cada família se dirigiam para as casas dos pais em cada uma das duas ilhas.


Uma vez por semana, Cal ou Bel se dirigiam à Saubara para ver como andavam as coisas. O contador era o gerente comercial. Tinha uma boa equipe. Passou a morar em Santo Amaro em excelente casa, perto da igreja de Nossa Senhora da Purificação.




8



Passaram-se cinco anos e as duas famílias se estruturaram cada uma a sua maneira. Alex, o filho mais velho de Bel estava prestes a se formar em Medicina, Mauro em Engenharia e Maria cursava Odontologia. Estava no segundo ano. Já os filhos de Cal, Carlos já estava formado em Administração e o pai lhe dera um galpão onde ele montou um mercado, O Calixto. Já Milena formara-se em Enfermaria e já trabalhava em um hospital em Itaparica. Era enfermeira-chefe. 


Felizmente, as famílias estavam bem. Bel e Cal também estavam bem. Os dois agora descansavam e procuravam gozar a vida cada qual a sua maneira e da melhor forma possível, dentro dos conceitos que cada qual tinham.  Bel gostava de fazer pesca oceânica e tinha como companhia constante o mestre Firmino e às  vezes do Mestre Ju. Cal  gostava de plantar. Seu sítio tinha todos os tipos de árvores frutíferas que pôde colher, além de uma belíssima horta.


A casa que Call tinha mandado construir em Maré, já fazia algum tempo, fora implantada no alto da Praia da Areia. A de Bell junto ao mar.







A de Bel ficava na Ponta de Areia. A de Cal em Itaparica


Os dois amigos revezavam-se nas visitas. Ora Bel ia a Itaparica; ora Cal ia a Maré. Os filhos e esposas estavam sempre presentes. Cada vez menos iam a Salvador. Os assuntos comerciais eram tratados por telefone com o contador que agora gerenciava o frigorífico da Calçada e com o Gerente Industrial que administrava o curral de Saubara e seu frigorífico. Fazia-se também contato com o Gerente de Vendas, responsável pela comercialização do pescado. O frigorífico da Calçada fora mantido, desde que recebia de Saubara as quantidades necessárias para o atendimento de clientes da capital.


Parecia que os dois amigos tinham dado como encerradas suas atividades. Davam-se como satisfeitos pelo que fizeram. Precisavam gozar um pouco da vida que lhes restavam. Sem se dizerem, fizeram como que um pacto com o ócio.


O mestre Firmino, sempre atento, achava que apenas uma etapa fora cumprida. Se nos negócios foram bem e os dois agora estavam ricos, no trabalho com os filhos havia algo a desejar. Verdade que os meninos vinham todos os fim de semana para as casas dos pais, mas afora isto, quase não os via. Chegavam, pegavam as lanchas e desapareciam. Voltavam lá pelas 3 horas para almoçar e já partiam de volta para Salvador. Tanto os de Bel, quanto o de Cal. As meninas já eram mais chegadas. Milena porque já morava com os pais e Maria porque gostava de conversar com a mãe.  Também Firmino estranhava que os filhos continuassem a morar nas pequenas casas que lhes couberam, apesar da riqueza dos pais. De estranhar também era o fato de que, nenhum dos rapazes tinha carro, um prazer cada vez mais comum de qualquer jovem.


Certo dia Firmino  quando estava a pescar com Bel na boca da barra à procura de pescadas e albacoras, indagou-o corajosamente.

 – Você conhece bem seus filhos?


Bel chegou a largar o molinete de surpreso.


- O porquê dessa pergunta? Há alguma coisa que eu não saiba?


- Não, pelo amor de Deus. Eu como padrinho de um deles, estou sempre preocupado. Acho que você deveria ir mais vezes ao Uruguai. Segundo eu sei, faz muito tempo que você não vai lá.



- É verdade, faz muito tempo, praticamente, desde que inauguramos o condomínio.


-Já são quase cinco anos.


- Não acredito que o tempo tenha passado tão rápido. A vida aqui em Maré corre que ninguém sente. Você tem razão. Amanhã mesmo vou até o Uruguai. Vou ver como vão as coisas por lá.



Bel  chegou ao Uruguai  por volta das 8 horas. Saiu de Maré às 7. Firmino o trouxe de lancha até a Ribeira. Bateu na porta da casa dos filhos e Maria veio atender.


- Pai, que surpresa! Estamos tomando café, o senhor chegou na hora certa.


Os dois outros filhos vieram abraçá-lo.


- Que novidade, pai. Tem tempo que o senhor não aparece por aqui e quando vem não avisa a ninguém. Já íamos sair tão logo tomássemos o café. Era o Alex, o filho mais velho.


- Resolvi vir ontem à noite.


- Que o trás aqui?


- Queria ver como anda o condomínio. Vou dar uma volta por aí, mas gostaria de almoçar com vocês. Quero comer uma carne. Em maré só como peixe e camarão e os carapicús do velho Firmino.  Pode ser?


- Claro pai. Podemos almoçar na orla. Lá tem boas churrascarias. Tenho uma aula prática no Hospital das Clínicas e podemos marcar às 12 horas na porta. De lá iremos pegar Mauro e Maria em suas faculdades. Está bem para o senhor?


Está ótimo!


Os filhos se despediriam e Bel se dirigiu primeiramente à casa do senhor Maneca.


- Que prazer seu Bel. Quanto tempo que não o vejo. O senhor está ótimo. Está até mais moço.


- !!!  O prazer é meu seu Maneca. Como andam as coisas por aqui?


- Seu Bel, não lhe conto. O bairro está cheio de marginais. Não se pode andar mais de noite. Você é assaltado na primeira esquina.


- O que? Você sabe a que horas meus filhos costumam chegar?


- Muitas vezes vejo-os. Depois das nove horas.
- E a Associação do Bairro, como anda?


- Acabou seu Bel. Ficou devendo não sei quantos aluguéis. Não pagou e foi despejada. O proprietário do imóvel onde ela funcionava quis entrar na justiça, mas desistiu da ação quando soube que a Associação não tinha nenhum registro. Era absolutamente clandestina, mas se sustentava graças a interesses políticos, principalmente do Demostinho quando era vereador. Quando ele não foi reeleito, a Associação não teve como se sustentar.


- Você podia me acompanhar? Quero ver como andam as coisas por aqui, especialmente o condomínio. Esse povo está sabendo conservá-lo?


- Que nada seu Bel. As casas estão sujas. Ninguém pinta nada. A fuligem dos ônibus e caminhões está sujando tudo.


- Estou esquecido, onde fica mesmo o mercado do Carlos, filho de Calixto?


- É logo ali. Vamos


Bel deparou-se com um grande supermercado. No alto, em letras garrafais estava escrito, CALIXTÃO.


- Mas como isto cresceu. Como aconteceu?


- Derrubaram o antigo galpão. Compraram não sei quantas casas ao redor e construíram esse monumento.


- Carlos está?


- Quem é o senhor?


- Meu nome é Bel.


- Só Bel?


-Só.


- Vou ver se ele pode lhe atender.


- Doutor Carlos tem aqui um senhor querendo falar com o senhor. Diz chamar-se Bel. Ah! Tudo bem vou mandar ele subir.


- Senhores, aquele escada. A primeira sala à direita.


Quando Bel abriu a porta deparou-se com uma sala de reunião onde se encontravam mais de 50 pessoas sentadas. Num elevado à frente, lá estavam Carlos e uma moça. A um sinal de espera, Bel e o senhor Maneca sentaram-se em cadeiras próximas.  Carlos continuou na sua fala. Falava de promoções, merchandising, marketing, propaganda em TV. Em seguida deu como encerrada a reunião. Levantou-se e veio em direção à Bel. A moça continuou sentada onde estava.

- Que surpresa seu Bel. Desculpe a demora. Vamos para meu gabinete.


- E ai, o que o trás aqui?


- Uma simples visita. Queria saber como você estava e conhecer a sua loja.


- Esta loja que o senhor fala é o maior supermercado da Cidade Baixa. Cresci muito. Tenho mais de 20.000 itens à venda. São quase 80 funcionários. Os que o senhor viu aqui são os mais graduados.


- Você está de parabéns. Estou contente pelo seu sucesso. Preciso ir. Só foi uma visita rápida. Como vai seu pai? Tem algum tempo que não o vejo. Não tenho ido a Itaparica nem ele a Maré.


- Ele teve algumas complicações de saúde, mas agora já está bem.


- Não sabia.  Diga a ele para me ligar.


- Direi seu Bel. Ah! Minhas desculpas quero lhe apresentar minha noiva. Vamos nos casar. Fernanda chegue até aqui, quero lhe apresentar um grande amigo do meu pai.


Ao se aproximar Bel reparou que a moça era bonita, mas não era simpática. Muito mais alta que ele e ainda assim, usava sapatos altos. No trabalho deveria pelo menos usar um sapato baixo. Estaria mais adequado e compatível com a altura de Carlos que saíra ao pai.


- Foi um prazer lhe conhecer. Trate bem desse menino. Até outra vez.


Bel  tinha esse dom ou esse mal. Gostava ou não gostava das pessoas só em vê-las. Sem dúvida que era uma precipitação achar que a noiva do Carlos era antipática e outras coisas. Era uma coisa instintiva. Tomara que a escolha dele esteja certa e a menina seja uma boa esposa.


Firmino comentava que essas percepções de Bel eram coisa de pescador. Só em olhar o mar sabia se ele estava bom para pescar ou não.


- Seu Maneca agora quero andar um pouco pelo bairro e logo percebeu que a maioria das casas, tantas as residenciais como as comerciais, estavam gradeadas. Verdadeiras fortalezas. A coisa devia estar braba por aqui.


- Seu Bel tem assalto todos os dias. Os caras apontam uma arma para o comerciante e exige esta ou aquela mercadoria. Todos são traficantes. Assaltam para se drogar e se drogam para roubar.


- E é gente daqui ou de fora?


- Tudo gente daqui. São pessoas que vieram para cá atraídas pela possibilidade de emprego nas indústrias que se instalaram por toda Itgapagipe, mas a procura de mão de mão de obra é muito menor do que a oferta. Aí não voltam mais para as suas terras. Permanecem aqui e começam a roubar para não morrer de fome.  À noite ninguém pode sair às ruas. Cobram até “pedágio” para a circulação, no caso de uma necessidade. O comércio fecha às 5 horas da tarde.


- Pelo amor de Deus e meus filhos vivendo nesse meio!


As 11.30 Bel pegou um taxi e se dirigiu até o Hospital das Clínicas. Alex já o estava esperando na porta.


- Pai. Vamos pegar Mauro e Maria em suas faculdades e de lá vamos para a orla.


Após o almoço, Bel fez uma pergunta geral. – Vocês estão satisfeitos em continuar morando no condomínio?


- Porque pergunta pai?


- Alex, esta manhã estive sabendo de umas coisas nada agradáveis que estão acontecendo no bairro, inclusive cobrança de “pedágio” para quem anda de noite pelas suas ruas. Vocês estão sabendo disto? Já pagaram  “ pedágio”?


Os três irmãos entreolharam-se entre si.


- Já pai. Sempre pagamos, exclamou Mauro. É melhor pagar.


- E sua irmã não está correndo o risco de sofrer algo mais grave? Vou ficar em Salvador esses dias. Vou chamar Firmino. Ficaremos em um hotel. Tratarei de arranjar um apartamento para vocês morarem num bairro digno. O Uruguai não é mais confiável.


Nesta mesma tarde, Firmino aportava a lancha na Ribeira e com duas sacolas de roupas foi se encontrar com Bel. Hospedaram-se em Ondina. À noite consultaram a lista telefônica à procura de uma corretora. Tinha uma bem perto do hotel. Também à noite ficaram atentos aos anúncios veiculados na televisão sobre novos apartamentos. Gostaram de um deles. Tomaram nota. Coincidentemente, a corretora era a mesma que haviam visto na lista telefônica. Havia mais dois lançamentos sendo anunciados da mesma empresa. Logo cedo alugaram um carro com motorista. O próprio hotel providenciou.


- Sim, senhores, o que desejam? Era a recepcionista da corretora de imóveis.


- Vimos o anuncio na televisão sobre determinado apartamento na Barra. Com quem tratamos?


- Um momento.  Vou encaminhá-los ao nosso diretor.


Chamava-se Alfredo Rigoni. Era alto e forte. Aparentava ter uns cinqüenta anos. Bastante calvo. Usava óculos de aros grossos. Timbre de voz altíssimo. Ecoava pela sala. Andava como que apressado. Passos largos.


- Eu me chamo Bel e meu amigo, Firmino. Vimos um anuncio na televisão sobre determinado apartamento na Barra. Estamos interessados nele.


- É bastante caro.  Posso sugerir algo mais em conta?


Bel olhou para Firmino. Firmino fez uma careta de surpresa.


- Não estamos acreditando no que o senhor acabou de dizer. Dizíamos que estávamos interessados em determinado apartamento na Barra e o senhor diz que ele é caro; que tem outro mais em conta. Praticamente, o senhor está nos botando para fora de sua sala. Seu tempo deve ser muito precioso para atender a dois caipiras que “ameaçam” morar na Barra e estão aqui de brincadeirinha.


- Oh! Pelo amor de Deus. Não é nada disto. Apenas quis lhes oferecer algo mais em conta, uma opção.


- Peço-lhes mil perdões. Por favor, sentem-se. Talvez tenha sido infeliz. Os senhores têm toda a razão. Sou um desastrado. É a agitação dessa vida. Dona Margarida traga um café para os senhores, ou os senhores preferem água, um refrigerante?


Bel e Firmino perceberam que o homem estava todo embaraçado, quase envergonhado. De branco que era, estava vermelho e suava a cântaros. Resolveram maneirar. Não estavam ali para brigar. No caso de Bel, estava ali à procura de uma solução para a felicidade de seus filhos. Seria o começo de um grande resgate.


Voltaram a sentar. Quase estavam próximos à porta de saída.


- Todo bem! Podemos ver o apartamento que queremos?


- Claro. Há uma pessoa no local. Temos um, todo preparado. Aliás, senão me engano, é a última unidade. Quer que eu os leve até lá?


- Não é necessário. Estamos com um carro alugado aí em baixo. O motorista deve saber onde fica.


Foram recebidos por uma recepcionista muito simpática. Que diferença de atendimento! O apartamento era uma beleza. Quatro suítes. Duas salas. Varanda para o mar. O edifício tinha piscina, sauna, sala de ginástica, quadra de tênis. Estava todo preparado - dos quartos até a cozinha, sem tirar nem por.


- Mestre, parece que vai ser este. O que o senhor acha?


- Realmente muito bonito. Os meninos merecem. São filhos maravilhosos. Tenho-os como se fossem meus.


- Quanto custa dona.....?


- Mariana. Estamos vendendo por quinhentos mil a prazo. À vista poderá ser resgatado por quatrocentos.


- E a decoração, quanto custa?


- Os senhores vão querer como está?


- Exatamente, como está.


A moça se afastou um pouco e começou a falar ao telefone.


- Pai, tem uns homens aqui querendo comprar o apartamento com tudo dentro. Informei-os que o preço era quinhentos mil a prazo ou quatrocentos mil à vista. Quanto custaria os móveis e demais utensílios?


- Diga a eles que é um presente de “Rigatoni”.


- Rigatoni?


- Eles vão entender.


- Meu pai acaba de me dizer ao telefone que a decoração é de graça. É um presente de Rigatoni. Que os senhores entenderiam.


- Você é filha daquele homem? Não acredito. Parece que a briga valeu.


- Os senhores brigaram?


- É. Não foi mesmo uma briga. Um pequeno desentendimento. Seu pai achava que nós não tínhamos condições de comprar este apartamento. Quase ele bota o caso a perder e nós não estaríamos aqui  comprando-o à vista. Pode me entregar as chaves imediatamente,


- À vista?!


- Sim, no dinheiro.


- Claro, como o senhor quiser. Vamos precisar assinar o contrato tão logo o senhor emita o cheque. As chaves já são suas.


Após a compra do apartamento, Bel e Firmino se dirigiram a uma agência de carros. Compraram dois carros. Um para Alex e outro para Mauro. A menina ainda era menor de idade e tão logo completasse 18 anos também teria o seu. Depois Bel ligou para os filhos.


- Estou convidando vocês para tomar um café da manhã. Está combinado? Vou mandar um carro lhes buscar. Aluguei um. Oito horas. Está bom para vocês? Ok!


À noite, no jantar no próprio hotel, Firmino arriscou tudo. – Senhor Bel, o senhor ainda precisa vender peixe?


- Como assim, Firmino?


-Eu estou rico com 1% que o senhor me dá todo mês; o senhor está milionário e os filhos andando de ônibus. Não seria a hora de passar as ações da empresa para eles. Assim eles teriam um rendimento seguro.


- Minhas ações?


- Sim. Elas próprias e talvez Calixto devesse fazer o mesmo para os filhos dele.


- Firmino! Você me surpreende a cada dia. Você tem mais noção de minha vida do que eu próprio. Você sabe o que eu devo fazer. Vou ligar para Cal agora mesmo, mas independente da decisão dele, de minha parte as ações já são dos meus filhos.


Cal também concordara em passar suas ações para os filhos dele.


 No dia seguinte, pouco mais das 8.30 os filhos chegaram ao hotel. O pai os recebeu no hall. Firmino era todo sorriso. Adoraram o café do hotel. O pai estava adorando a presença dos filhos.


- Agora vamos a um lugar. Maria e Mauro irão comigo e Alex vai com Firmino num táxi. Chegaremos juntos.


E os dois carros entraram nas dependências do edifício onde Bel havia comprado o apartamento.


- Pai, por que viemos até aqui? Algum amigo seu mora aqui? Era a filha mostrando estranheza.


- Vamos subir até o décimo andar.


Bel tirou a chave do bolso e abriu o apartamento.


- É de vocês.


Os filhos ao tempo em que abraçavam o pai se abraçavam, corriam em todas as direções do lindo apartamento. Que vista! Como é grande! Que lindos móveis! Olhe a cozinha! Veja os quartos! Todos têm banheiro! Sensacional!


- Agora que vocês já viram o apartamento, vamos descer. Tenho outra surpresa para vocês.


Na garagem estavam estacionados dois lindos carros.


- Podem escolher os que quiserem. Quero que se mudem imediatamente.


- Outra coisa. Estou passando as ações da empresa de pesca para os seus nomes em partes iguais. Vocês farão uma retirada mensal. Calisto também concordou em passar as ações dele para Carlos e Milena. Também merecem.


E na semana seguinte, os três já estavam morando no novo apartamento. Colocaram a casa para alugar.




9


Na semana seguinte Alex foi ao escritório da corretora para pegar a escritura definitiva do apartamento. Foi atendido por Mariana, a filha do Sr. Rigoni.


- O senhor é filho do Sr. Bel? Uma pessoa decidida. Eu sou filha de Rigoni.


- Muito prazer. Vim buscar a escritura. Seu pai ligou informando que já estava pronta.


- É verdade. Vou buscá-la.


Alex reparou que a moça tinha um corpo belíssimo. Também era muito bonita de rosto.


- Está aqui. Você não quer um café ou uma água?


- Aceito um café.


- Está gostando do apartamento. Fui eu que o vendi ao seu pai.


- Estamos adorando. É um belo apartamento. Bem localizado. Com vista para o mar. Estamos satisfeitos.


- Trabalha com seu pai há quanto tempo?


- Em verdade, não trabalho fixo para o meu pai. Faço apenas alguns eventos para aumentar a mesada. Eu faço faculdade. Faculdade de Medicina. Estou no segundo ano.


- Eu também faço Medicina. Formo-me no próximo ano. Já estou estagiando no Hospital das Clínicas.


- Qual será a sua especialidade?


- Cirurgia Geral.  E você vai seguir o que?


- Quero ser pediatra.


- Que bom. Então somos colegas?


- Colegas e espero que sejamos amigos. Seu pai está morando com vocês?


- Não. Meu pai mora na Ilha de Maré.


- Ilha de Maré?  Não conheço a Ilha de Maré. Gostaria tanto.


- Se você quiser podemos ir no domingo.


- Amaria. Posso levar meu irmão. Ele também faz faculdade. Engenharia. Está no terceiro ano. É mais velho do que eu.


- Como farei para lhe pegar. Você mora onde?


- Moro em Itapuã. Mas não precisa você me pegar lá. É muito longe. Temos aqui em Ondina um kit net onde dormimos,  eu e meu irmão Jean, de segunda a sesta feira, por causa da faculdade. Ficaremos aqui no sábado. Pode ser?


- Claro. É só você me dá o endereço e o telefone para contato. Posso lhes pegar às 7 horas. É bom chegarmos cedo à ilha. O proveito será maior.


No domingo na hora combinada, Alex foi pegar Mariana e seu irmão. Mauro e Maria foram para a Ribeira no outro carro. A lancha do pai já estava ancorada na marina da Ribeira. Foi trazida pelo marinheiro que cuidava dela.


 - Agora vamos para a Ribeira. A lancha do meu pai já está lá. Meus irmãos foram diretos.


- Seu pai gosta de lancha?


-É. Ele sempre gostou de andar no mar. Foi pescador no Uruguai. Era um tainheiro. Na época tinha uma canoa. Hoje tem uma Casbrasmar 41, com a qual ele faz pesca oceânica com um amigo dele, mestre Firmino que você conheceu e, eventualmente é usada para trazê-lo a Salvador ou nos buscar.


- E ele vende o peixe lá mesmo em Maré ou em Salvador?


- Ele não vende mais peixe. Vendeu muito. Toneladas e mais toneladas. Hoje apenas se diverte. O peixe é oferecido às famílias pobres da ilha e amigos. Só exige uma coisa. Quando pega uns caçonetes e os dá aos amigos, pede-lhes que lhe convide para a moqueca. Suas empresas de pesca encarregam-se de vender. Ele tem um pessoal especializado. Aliás, ele acaba de passar as ações para nossos nomes.


Quando chegaram à Ribeira, Mariana se espantou com a beleza da lancha e sentiu quanto foi  mal educada ao perguntar se o pai de Alex vendia os peixes que pegava.  A lancha era um espetáculo:






- Nunca vi lancha tão bonita. É de seu pai?


Outro procedimento inconveniente da menina achou Alex. Já estava arrependido de tê-la convidado. Já estava imaginando quando ela visse a casa de Maré. O que iria pensar? Que meu pai é um ladrão. Roubou de alguém? Que seria um traficante internacional? Não sabia mais o que imaginar. Sem querer, achou necessário dizer àquela menina que o pai dele era um milionário e que ficou rico vendendo peixe.


- Mariana, meu pai é um cara muito rico. Teve e tem  indústrias de pesca. Trabalhou duro toda a vida. Merece ter o que tem hoje.


- Alex, estou apenas admirada.  Aprecio as pessoas que vencem na vida. Meu pai também foi assim. Veio do nada e hoje também pode ser considerado um homem rico.


Rapidamente chegaram à Maré. Mariana ficou encantada com a casa de Bené, mas teve o cuidado de não fazer nenhum comentário. Poderia ser de novo mal interpretada. Notou que Alex ficou desconfortável quando ela perguntou se o pai vendia o peixe que pescava. Se fosse ela, diria que vendia mesmo. Qual é o problema? Também não gostou quando manifestou admiração pela lancha. Realmente nunca tinha visto nada igual. Foi algo espontâneo, absolutamente natural. Doravante, tomaria mais cuidado! O Alex parecia ter um problema com relação à riqueza do pai. Casos como tais surgem quando há algo de ilícito na formação da fortuna. Não sabia se era o caso do pai de Alex.


Efetivamente, Alex sabia que a fortuna do pai tinha se iniciado de uma forma hábil, mas não ilícita. Todas as pessoas que moravam no Uruguai e que possuíam casa ou negócio ficaram com o espaço correspondente.  O pai tinha currais de peixe. Alcançava uma grande área. Sabia também que a Prefeitura concedeu ainda mais espaço para a construções de casas. Sabia que havia um largo déficit habitacional com a chegada de muitos trabalhadores oriundos do recôncavo e das ilhas. Que a Prefeitura não tinha recursos para construir as casas no aterro que se fizera. Que as pessoas e as empresas mais capitalizadas foram procuradas para assumir essa responsabilidade. A do seu pai foi uma delas.


 Os jovens divertiram-se a valer em banhos de mar e passeios em lombo de burro pelas trilhas de Maré e até pelas praias. O pai tinha mandado preparar uma moqueca de caçonete. Firmino foi o responsável. Adoraram! Lá pelas 4 horas da tarde retornaram a Salvador. Alex levou Mariana e o Jean até Itapoã, onde eles moravam. Não saltou do carro. Alegou que já era tarde e não queria dirigir à noite. Prometeu voltar a se falar por telefone. Mauro e Maria foram diretos para o apartamento.


- O que vocês acharam de Mariana? Perguntou Alex aos irmãos.


- Parece ser uma boa moça, respondeu Mauro.


- Muito inteligente por sinal. foi a vez de Maria. E você o que achou?


- Ainda não formei um juízo sobre ela, por isso perguntei.


No dia seguinte ainda cedo, Alex recebeu uma ligação do pai de Mariana. Estava agradecendo a acolhida que seus filhos tiveram em Maré e os estava convidando para um almoço no domingo seguinte em Itapoã. Fazia questão que Bel e esposa também viessem, bem como Firmino que ele também conheceu.


Alex ligou para Maré e todos concordaram em vir.


A casa do senhor Rigoni era também uma beleza. Piscina, quadra de tênis. Frente para o mar de Itapoã. Um privilégio. A senhora do senhor Rigoni, dona Lúcia, muito simpática. Mariana parecia muito com ela. Tinha pouca coisa do pai. Almoçaram camarões de diversos tipos: de salada, de ensopado, de moqueca.


Na parte da tarde os meninos foram comer acarajé e abará na barraca de Cira, famosa “baiana” de Itapoã.


Alex evitou fazer qualquer comentário sobre a beleza da casa da amiga. Temeu um revide. A de seu pai é bem melhor, poderia dizer. Conversaram muito sobre a faculdade. Por sua vez Jean e Maria se entendiam cada vez mais. A afinidade começou em Maré.


Bené, Firmino e Rigoni ficaram a conversar em torno da piscina.


- Agora é a vez de você ir até Maré. Vamos combinar um domingo desses. Poderemos combinar uma pesca oceânica. O senhor já pescou?


- Não, nunca pesquei. Tenho amigos pescadores aqui na colônia de Itapoã, mas nunca me arrisquei  no  mar. Para lhe dizer a verdade, a única vez que eu pesquei foi em Jacuipe em cima da ponte. Peguei alguns siris. Há quanto tempo o senhor pesca?


- A vida toda.


- Como assim?


- Fui pescador em Itapagipe. Era um tainheiro. Depois fiz um curral de peixe, idéia do Firmino. O curral pescava por mim é verdade, mas sempre estive junto do peixe. Tenho um frigorífico na Calçada e outro em Saubara e por ai sigo sempre lidando com peixe. Acabei de passar as açõrs desses frigorificos para meus filhos. Meu amigo Cal também fez o mesmo como os filhos deles. Quando fui para Maré comprei uma lancha com a qual saio quase todos os dias para pescar, mas aí já é mais uma diversão do que negócio. Todos os peixes que pegamos são dados à comunidade de Maré. E o senhor há quanto tempo vende apartamentos?


- Também há muito tempo. Meus pais eram emigrantes italianos. Tinham uma pizzaria. Talvez tenha sido uma das primeiras pizzarias de Salvador. Eu era filho único. Desde muito menino ajudava meu pai na pizzaria. Quando ele morreu tentei dá prosseguimento ao negócio, mas não deu certo. A freguesia que era de meu pai se afastou. Coloquei a pizzaria à venda. Tinha um amigo que era corretor. Ele se encarregou de vender o imóvel. Depois ele me chamou para trabalhar com ele. Estou neste negócio, desde então. Já fiz para mais de 50 lançamentos.


Após duas semanas, a família Rigoni foi à Maré. Bené mandou a lancha pegá-los na Ribeira. Os filhos de Bel já estavam na ilha. Tinham começado as férias.


Logo foram acomodados, Rigoni e o filho Jean  aceitaram o convite de Bel para uma volta pelas ilhas. Firmino também estava presente. Talvez pescassem um pouco.


- Vamos passar rapidamente em Itaparica para pegar Cal, meu grande amigo.


Milena também embarcou. Após um rápido tour por algumas ilhas, resolveram fechar o passeio com uma tentativa de pescar algum peixe.  E, nesse dia o mar estava para peixe. Pegaram um Marlim de mais de 2 metros. Tiraram foto do peixe se debatendo.









Ainda pegaram outros peixes, notadamente pescadas e pequenos atuns. Rigoni ficou encantado. No dado momento Firmino lhe passou o molinete e ele ficou ainda mais maravilhado.


- E eu só vendendo imóveis e os peixes aqui me esperando. Vou comprar uma lancha. Isto que é vida.


Voltaram por volta das 13 horas. Os peixes foram dados aos pescadores da Colônia, liderada por Mestre Ju. Novas fotos foram tiradas do Marlim. Foi uma atração inesperada para os turistas e veranistas. Para todos. É raro esse peixe por aqui.


Efetivamente, Rigoni comprou uma lancha e virou um aficionado do esporte. Praticamente, todos os fins de semana esperava a lancha de Bené na Boca da Barra e as duas lanches seguiam para o alto mar, cerca de 20 milhas da costa. Nessa distância, era aconselhável sempre ir duas lanchas. Era uma recomendação da própria Marinha. Se alguma desse defeito, a outra rebocava.


Dados por satisfeitos, Rigoni se dirigia para Itapoã e Bel para Maré. Em Itapoâ Rigoni vendia os peixes para defender a gasolina e em Maré, Bel continuava dando os peixes. Uma questão de princípio. Os dois estavam certos!



10


Passaram-se dois anos. Alex se formara e já estava operando. Mauro estava prestes a se formar. Maria cursava o quarto ano e se formaria no ano seguinte. Mariana também se formaria também no próximo ano e Jean formar-se-ia ainda este ano em engenheiro. Milena continuava como enfermeira-chefe  e exercia a profissão em Itaparica. Mauro também se formaria em engenharia no próximo ano.

Decorrido um mês, o escritório de engenharia apresentou o projeto. Já tinha sido feitos contatos com os órgãos públicos que aprovariam sua construção. As cabanas tinham um detalhe absolutamente inovador. As partes principais da casa, como salas e quartos tinham o piso de vidro transparente. Seu morador iria se sentir como que flutuando sobre o mar. Haveria também uma clarabóia em cima de uma das salas onde o morador teria a sensação de estar entre o céu e o mar.


Na parte de fora de cada residência uma escada em direção a um pequeno píer onde o morador poderá dar seus mergulhos e tomar seu sol tranquilamente. Poderá também tomar seu café da manhã ou tomar seu drinque. Também serviria para atracação de lanchas.




As casas de mar









Ligação entre elas


Ao centro seria construída duas ou três cabanas maiores que abrigariam restaurantes, salão de festas, cinema, academia, artesanato e serviços gerais.


- Que nome o senhor vai dar ao condomínio ou clube, senhor Bel, perguntou um dos engenheiros?


- Resort Casas de mar, simplesmente “Casas de Mar”. Sei que o povo no futuro vai dizer Casas de Mar de Maré, mas também está bom.


Com o projeto em mãos, Bel se dirigiu ao Banco do Brasil, onde tinha conta. Foi a procura do mesmo gerente que havia feito o financiamento do Condomínio da Maré, no Uruguai. Não o encontrou. Agora estava numa das diretorias. Havia sido promovido. Motivo: a grande negociação do Condomínio da Maré. Deu ao banco grandes lucros. Chamava-se Paulo. Aliás, Dr. Paulo.


- Quero falar com Dr. Paulo, dizia Bel ao gerente que no momento lhe atendia.


- O senhor tem hora marcada?


- Hora marcada? Não. Diga a ele que é Bel do Condomínio da Maré.


O gerente fez o contato pelo telefone interno. - Dr. Paulo pede que o senhor suba. Sala da DIPEC – Diretoria de Política Econômica.


- Senhor Bel, que prazer! Como anda “nosso” condomínio?


- Faz tempo que eu não vou lá. O senhor ainda tem a casa que lhe demos?


- Não. Eu a vendi. Achei cem mil e passei adiante. Que o traz aqui. Outro condomínio? Estou vendo o senhor com este canudo nas mãos. É um projeto?


- Em verdade, é um projeto. Parece que o senhor adivinha as coisas.


- E aonde será o condomínio desta vez?


- Na Ilha de Maré. Não é bem um condomínio, é um resort, por ai.


Aí Bel abriu o canudo em cima da mesa do diretor. – Ei-lo.


- Bem original. De que forma  posso ajudá-lo?


- Financiá-lo.


- Não sei se os financiamentos estão suspensos provisoriamente. Vou ter que consultar o Gepro.


- Isto aqui está cheio de siglas – Dipec- Gepro. Tem algum lugar com a sigla “C L I E N T E”?


- Como assim?


- Você quer fazer negócio ou não quer? Vamos ser mais diretos. Não falta banco por aí interessando em financiar um projeto como este e banco onde eu não tenho conta. Aqui eu tenho. Foi aberta quando você ainda era gerente. Faz algum tempo.


- Claro que queremos fazer negócios, mas o senhor compreende... Um momento, preciso realmente consultar o gerente do Gepro.  Não tenho esse poder. Já estou acessando o computador.


Na realidade, o homem estava acessando a conta de Bel. Queria saber quanto ele possuía no banco.


Um bilhão e oitocentos milhões de reais indicou o computador. Dentro em pouco teria dois bi.


Meu Deus, se este homem tirar sua conta do banco por causa desse financiamento, vou perder o emprego, pensou o homem. – Quanto o senhor precisa?


- Não preciso de nada. O banco é que precisa fazer empréstimos para que este país cresça e se desenvolva. Esse projeto visa solucionar um problema social e incrementar o turismo interno em nosso estado e outras coisas mais. Ainda não tenho uma avaliação completa. Vim apenas fazer uma sondagem e em seguida mandar orçá-lo devidamente, mas só pretendia fazê-lo após todas as certezas. De resto, preciso sair daqui convicto que vocês financiarão o projeto, como, igualmente, criarão todas as facilidades para os futuros compradores das”  casas de mar” que serão construídas. A corretora que for encarregada das vendas usará esta “facilidade” como uma arma poderosa de convicção.


O Paulo, aliás, Dr. Paulo, estava impressionado com a esperteza daquele homem que estava à sua frente. Um simples pescador, modesto, mas uma águia, ou melhor, um cação.  Sabia pegar sua presa na hora certa e desta feita fui eu o peixe que ele abocanhou.

O projeto foi aprovado pelo banco que liberou um financiamento de cinqüenta milhões de reais numa primeira etapa. Caso haja necessidade, outras parcelas seriam concedidas.




11


Em três meses a maioria das casas de mar estava instalada. Começava a etapa de decoração interna.


Bel ainda estava em dúvida se seria apart=hotel, no caso, casa-hotel, ou se venderia as casas em definitivo ou se faria um sistema misto.  Mandou chamar seu amigo Rigoni. Ele era mais ou menos do ramo. Agora já eram verdadeiramente amigos. Os filhos namoravam entre si. Aquela primeira impressão se desvaneceu completamente. Era gente muito boa!


O corretor ficou maravilhado com o projeto.


- O chamei aqui porque estou em dúvida sobre a melhor maneira de agir na condução dessas casas. Não sei se as vendo isoladamente? Se faço um hotel? Um apart-hotel? Essas coisas?


- Em faria um apart-hotel. Você certamente quer uma integração do turista à ilha. Ele contribui para o convívio social entre os hóspedes e não tem a formalidade de um hotel. O adquirente voltaria sempre ou mandaria alguém da sua família ou de sua empresa. Sim, empresas poderão comprar duas ou mais casas para férias de funcionários e obsequiar fornecedores e clientes. Não vejo futuro para um simples hotel, mesmo com essas características. O Club Mediterranee, por exemplo, no inverno fica um deserto.  Funciona como se fosse um hotel.


- Você está certo. Será um flat. Evita a concorrência.


E em menos de três meses todas as unidades tinham sido vendidas, principalmente a empresas.


Enquanto isto, as casas de mar dos operários de Aratu já tinham sido construídas e ficaram excelentes, bem melhor que as palafitas sujas e desodernadas.


- Rigoni voltou para Salvador em sua própria lancha. Firmino tinha algo importante a falar com Bel.


- De que se trata mestre?


- Estou sabendo que Cal vendeu sua casa de Itaparica e agora está morando no Condomínio do Uruguai. Milena foi com ele. Vai e volta todos os dias por causa do emprego. Por vezes, dorme no hospital.


-Não acredito Firmino. O que aconteceu?


- Primeiramente, ele teria ficado doente, com a pressão muito alta. Estava tendo problemas com o filho.


- Com Carlos, por quê?


- Coisas lá do supermercado. Parece que a coisa não vai bem.


- Ligue para Cal agora mesmo. Quero falar com ele.


- Bel estou tentando, mas ninguém atende.


- Precisamos marcar um dia para ir visitá-lo.


- Quando o senhor quiser.


- Iremos amanhã, como sem falta.


Encontraram o amigo abatido e envelhecido. Era outro homem. – O que aconteceu Cal?


- Bel, não soube controlar meu filho, Aliás, praticamente foi ele que me dominou. Quis ampliar o supermercado e eu comprei as casas ao redor. Fez um frigorífico talvez maior que os nossos. Encheu a loja de produtos importados. O povo dessa região não tem este poder de compra. Muita mercadoria estragada. Constantemente ele viajava para o exterior; dizia que era a negócios, mas não era. Fez-me entrar para sócio sobre a alegação de que eu deveria dirigir a coisa.  Não tinha nenhuma experiência. Só devo ter feito bobagens. Os credores começaram a entrar com ações de cobrança. Numa dessas, minha casa em Itaparica foi no pau. Fechei a loja. Fomos envolvidos em dezenas de ações trabalhistas.


- E o Carlos, o que dizia?


- Ele praticamente desapareceu. Deixou-me  sozinho.


- Mas isso não pode ficar assim. Você morando aqui. Prepare suas coisas e de sua mulher e amanhã mesmo você se muda para Maré. Vai morar comigo. Milena também.


- Mas Bel. Não é justo.


- Sempre moramos juntos. Aquela parede entre as nossas palafitas não dividia nada. Era tudo uma casa só. Vai ser assim novamente. Tenho uma casa enorme. Nem vamos sentir que moramos juntos como antes. Mas quero você perto de mim. Você dirigirá o resort que estou fazendo. Você sempre foi trabalhador. Agora será um executivo.



12


Bel e Cal voltaram a trabalhar juntos. Aos domingos, entretanto, os dois amigos saiam a pescar na lancha de Bell.  Praticamente era como antigamente. Um na popa e o outro na proa. Vez em quando davam um pulo na Enseada dos Tainheiros e pescavam tainhas com tarrafas. Como faziam ao tempo da canoa. Noutras ocasiões iam pescar camarão e siri mole em Freguesia. Procuravam restabelecer aquele tempo.


Numa determinada segunda-feira Maré amanheceu envolta numa espessa neblina. Não se enxergava nem os coqueiros. Muito mal se viam as casas de mar, já prontas. Em meio a essa neblina viu chegar uma lancha. Foi a primeira a usar o píer de uma delas.  Dela saltou alguém que, entre os caminhos suspensos de madeira, se dirigia para a terra. Só recnheceu Carlos, o filho de Calixto, quando ele se aproximou de sua casa. Estava mais gordo e usava barba.


- Que surpresa Carlos, você por aqui? Veio ver seu pai?


- Não. Já soube que ele está bem, morando com o senhor.


- Que o trás aqui, então, numa segunda feira dessas? Não se enxerga nada.


- Vim conversar com o senhor e com o mestre Firmino sobre como vocês conseguiram tomar aquele mar do Uruguai e depois fizeram  o condomínio.


- Como assim?


- Meu pai me dizia que foi o mestre quem idealizou a invasão, mas não me contou detalhes.


-Não houve nenhuma invasão. Fizemos apenas um curral para pegar peixe. A Prefeitura foi quem aterrou tudo aquilo, inclusive o espaço de nosso curral. Ganhamos o terreno posteriormente por questões de direito de propriedade, como aconteceu com todo mundo. Só que o nosso espaço era maior, o que nos possibilitou fazer o condomínio. Terreno maior que o nosso ganhou um industrial na Maçaranduba por indicação da própria Prefeitura. Ela tinha todo o interesse que se construísse de logo moradias para as pessoas que estavam vindo do interior, atraídas pelas indústrias que cresciam em Itapagipe.


- Então foi assim? Não é o que me contaram muitas pessoas com quem conversei lá no bairro.


- Que pessoas foram essas?


- Gente ligada ao Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Itapagipe, colegas meus.


- Colega seus? Você entrou nessa?


- Nessa como? É um trabalho social dos mais dignos. Defendemos a comunidade contra os ricaços de plantão.


- Você está me incluindo nessa? Se está, seu pai também participou da operação. Fomos sócios. Ele deveria estar aqui para ouvir esta conversa. Vou mandar chamá-lo.


- Não há necessidade. O senhor sozinho poderá me dar as informações que preciso. Só informações. Não quero seu dinheiro.


Então?


- Estamos preparando uma invasão do mar como os senhores fizeram, naturalmente sem os artifícios de currais, essas coisas. Tem muito gente precisando de moradia e o mar é o único espaço ainda disponível.


- Vocês vão então invadir ainda mais aquilo ali?


- Não. De jeito nenhum. O que restou no Uruguai já é canal. É muito profundo. Não dá para invadir com palafitas como estamos pretendendo.

- Então a invasão vai ser aonde?


- No Porto dos Mastros.


- No Porto dos Mastros? Aquela área nobre cheia de casas de veranistas?


- Exatamente ali, sem tirar nem por.


- E quando vai acontecer a invasão?


- Na próxima Lua Cheia.


- A Lua Cheia será na próxima sesta-feira.


- Exatamente. Em noite esplêndida! Seu Bel já falei muito. Foi um prazer revê o senhor. Dê um abraço no meu pai  e na mãe. Estou voltando para Salvador agora. Mais uma pergunta. O senhor está invadindo o mar aqui em Maré? Quando cheguei andei por aquelas casas.


- Aquilo não é uma invasão de mar. Tem a devida licença dos órgãos competentes. Aquilo será...


E Bel parou por ai. Pensou. Como é o destino! A primeira pessoa, afora os operários, ele próprio, Cal  e Firmino, a transitar pela espinha dorsal da obra foi, justamente, o filho de Cal seu grande amigo. Que seja benéfica aos deuses esta coincidência, apesar dos pesares... 


13


Quando Carlos foi embora Bel mandou chamar Firmino com toda a pressa. Não queria que Cal se envolvesse nessa questão.


- Mestre!  Precisamos conversar e pensar muito. Carlos, filho de Cal esteve aqui. Ainda era muito cedo.  Você não pode imaginar o que ele acaba de me informar. Vão invadir o Porto dos Mastros. Determinado sindicato está coordenando a invasão. Carlos é um dos chefões.


- Pois bem. Já que temos a notícia, acho que nos cabe avisar à polícia do que está prestes a ocorrer. É nosso dever.


- Mas como avisar a polícia? O senhor vai se indispor com o filho de Cal e muito mais gente? Deve haver muito interesse no caso, inclusive político. Tenho conhecimento que antes já foram feitas várias tentativas de invasão, todas contidas pela Marinha. Certamente as autoridades haverão de impedir, mais uma vez.


- Mas, Firmino, não podemos arriscar. Agora parece que a coisa está mais organizada. Tem até sindicato envolvido.


- Patrão, cuidado!


- Não me chame de patrão. Você tem alguma razão, mas podemos fazer uma denúncia anônima.


- Daqui de Maré. Vão ver que partiu de você.


- Não faremos a denúncia daqui. Você a fará da Ribeira.


- Eu, patrão?  Oh, desculpe, Bel. Senhor Bel.


- Você! Já que me chamou de patrão, isto é uma ordem. Pegue a lancha. Vá até a Ribeira, sozinho, e em telefone público faça a denúncia. Está ordenado! Estou brincando, mas é preciso que você se conscientize da necessidade de fazer qualquer coisa que impeça este crime. Se não fizermos nada, vamos nos sentir culpados para sempre. Isto é muito grave.


- Está bem. Amanhã eu faço isto.

-Não Firmino. Você vai agora. Hoje Firmino. Pegue a lancha e vá. Urgente! Por favor. Ligue-me de lá, confirmando.


Firmino saltou na Ribeira e se dirigiu para um telefone público. Estava de chapéu e óculos escuros. Não queria que ninguém o reconhecesse. Discou informações e pediu o telefone da polícia. Precisava fazer uma denúncia. O telefone é: 71(80)0284-5551- Disque Denúncia – CEDECA -  informou a telefonista.


Antes de discar, mais uma vez olhou ao redor. Alguém se aproximava e parou justamente atrás dele. Tremeu. Tinha sido descoberto. Era pura impressão. Era alguém que queria telefonar. Deu lugar à pessoa e sentou-se na balaustrada pensativo. Devo fazer isto? Mas, se não o fizer o que direi ao Bel. Poderei dizer que fiz, mas não fiz. Não! Isto não! Nunca menti para ele e não seria desta vez. Partiu para o ataque. A pessoa que queria telefonar já tinha ido embora.


- Alô, quero fazer uma denúncia.


- O senhor está falando de onde?


- Mas a denúncia não é anônima. Como vou dizer de onde estou falando. Daqui a pouco você vai querer meu nome, identidade e CPF. Desisto.


-Não, por favor, pode fazer a denúncia. Estaremos gravando.


- Gravando, como é que pode?


- Senhor, estaremos gravando apenas a denúncia não o seu nome e outras coisas mais.


- Pois bem. Vão invadir o Porto dos Mastros na próxima sesta feira à noite e instalar no local milhares de palafitas. É dia de Lua Cheia. O mar estará todo recuado às 10 horas, mas já às 8 horas aquilo ali é só lama. Conheço o local.


- Senhor,  estou interrompendo a gravação para lhe perguntar. – Quem vai invadir o Porto dos Mastros? O nome da pessoa ou das pessoas, por favor.


- Você está brincando comigo. Você quer que eu diga o nome das pessoas? Esta não! Devem ser milhares de pessoas.


- Oh! Desculpe.


- Uma coisa importante. Qual é o telefone da Marinha? Quero denunciar também à Marinha.


- Não se preocupe senhor. Nós próprios nos encarregamos disto. Não só à Marinha bem como todos os órgãos responsáveis pelo meio ambiente. Pode ficar tranqüilo. Sua denuncia está registrada. Obrigada.


Firmino colocou o telefone no gancho e olhou para todos os lados. Não estava se sentindo bem. Suava frio. A camisa estava encharcada. Não pensava como era difícil e traumatizante fazer uma denúncia. Apesar de incentivada pelos órgãos de comunicação, parecia um ato ilícito. Não tinha um responsável. Era anônimo. Sentou de novo na balaustrada tentando melhorar. Se chegasse assim até a lancha, o marinheiro que o trouxe poderia desconfiar. Resolveu tomar uma cerveja na Penha. Lá estava a ilha. Não havia neblina. Ela como que resplendia ao sol. Fazia mais de vinte anos que morava lá. Sozinho. Precisava arranjar alguém para lhe fazer companhia. Mas já estava velho, mas que pensamento bobo? Sempre viveu sozinho e não seria agora que se prestaria ao ridículo. Quem gostaria de morar com ele? Ninguém! Levantou-se e resolveu voltar para a sua casa. Lá se esconderia naquela noite.  


                                              14


Na tarde da sesta feira a polícia isolou toda a Rua Domingos Rabelo, o Porto dos Mastros, como era mais conhecida. Foram fechadas as duas extremidades. A do Largo do Papagaio e a da Ribeira, bem como todas as transversais que dava para a Rua Dois de Julho ou Visconde de Caravelas. Isolaram a Madragoa. Havia mais de 300 soldados na operação. Barcos do Corpo de Bombeiros estavam circulando ao largo. A maré ainda estava cheia. Um carro com alto-falante circulava na rua, ponta a ponta, avisando aos moradores a necessidade de se identificar ao sair ou entrar. Bastava um recibo de luz. Recomendava-se, entretanto, que evitassem sair à noite. Também havia restrições na Visconde de Caravelas e na Avenida Beira Mar. Os bondes não chegariam até o Largo do Papagaio a partir das 19 horas. Fariam a volta no Largo de Roma. Estava montada uma operação de guerra. Ei-la, esquematizada:







Enquanto isto acontecia, os chefes da invasão, Carlos entre eles, observavam tudo do alto de São Caetano. Portavam binóculos. Já estavam lá desde as 4 horas da tarde. Haviam contratado 100 marisqueiras a um cruzeiro por pessoa, para uma simulação que aconteceria a partir das 20 horas. Todas, portando um fifó a querosene, foram espalhadas desde Santa Luzia a Lobato. Na hora combinada, acenderiam os seus fifós e entrariam na lama até cerca de 50 metros para fora. Ficariam circulando de forma desordenada em meio à escuridão.
              


Também a partir das 19 horas, milhares de pessoas se reuniriam no Alto do Bonfim, em torno da igreja para a operação da invasão do Porto dos Mastros. Todas as comunidades foram avisadas. Essas pessoas deveriam portar paus e madeiras para fixação na lama, determinando o espaço da palafita de cada família. Também era conveniente levar facões para corte de paus de mangue, farto na área a ser invadida.

Recomendava-se silêncio profundo em respeito ao local, mas, principalmente, para não serem notadas. O acesso à Santa Colina deveria ser feito, preferencialmente, pela Rua São Francisco, no Alto de Monte Serrat. Era mais discreto. Sempre que possível, deveria ser evitada a subida pela ladeira principal. Chamaria muita atenção. Todos deveriam ficar sentados ou ajoelhados, rezando se quiserem. Os paus e os facões ao lado.


Pouco antes das 20 horas, Carlos ligou para o Disque Denuncia avisando que a invasão do mar se daria em Santa Luzia e Lobato e não no Porto dos Mastros. De imediato foi feito o contato com o comandante da operação militar.

- Comandante, acabamos de receber uma denúncia de que a invasão do mar aí em Itapagipe vai acontecer realmente em Santa Luzia e Lobato. A informação de que ela aconteceria no Porto dos Mastros foi um blefe para desviar a atenção da Policia Militar. Os invasores estão entrando no mar a partir desse instante.


O comandante olhou para o outro lado e viu dezenas de pontos de luz se movimentando, como se fossem vaga-lumes.


- Fomos enganados! Disseram que a invasão seria aqui e estão invadindo do outro lado. Vejam as luzes se movimentando. São eles. Cadê os caminhões? Embarque a tropa nos veículos e se dirijam imediatamente para o Lobato. Aqueles que não couberem nos caminhões deverão seguir a pé pelo Caminho de Areia, Avenida dos Mares e virar à esquerda na Rua do Imperador. Estou indo no meu carro. Retire as barreiras!Libere a rua! Operação suspensa e transferida! Avisem ao Coronel Comandante nos Dendezeiros.


Do lado do Bonfim, os verdadeiros invasores começaram a descer da Colina Sagrada pela Ladeira dos Romeiros. Alçaram a Praça Divina. Todos descalços. Tomaram à Rua do Meio e em seguida a Rua da Paz. Todas estavam à escura. Um grupo de garotos havia se incumbido  de quebrar todas as lâmpadas existentes no percurso. Até o Largo do Papagaio estava na escuridão. Os militares não haviam notado. Os invasores chegaram perto. Aproximaram-se do Porto dos Mastros e invadiram o mar com seus paus e madeiras. Delimitaram centenas de espaços. Uns mais audaciosos já levantaram as primeiras “paredes”de madeira.

Paralelaamente, os caminhões dos militares chegavam à Baixa do Fiscal. Encontram-na interditada. Foram levantadas barreiras com pneus velhos que estavam a se incendiar. Fortes colunas de fumaça assustavam as pessoas residentes no local. Não havia como passar. Chamaram o Corpo de Bombeiros. Demorou muito. Quando conseguiram um espaço para os caminhões seguirem seu caminho, já tinham decorridom mais de 40 minutos.


Finalmente chegaram primeiro em Santa Luzia e depois em Lobato. Não havia ninguém no mar a não ser algumas marisqueiras catando papa-fumos. Algumas delas foram abordadas, mas ninguém viu nada; ninguém sabia de nada.

- E as luzes que eu vi por aqui?

- Foram de pescadores de agulha que acendem seus fifós para atraí-las com a luminosidade. À medida que o mar se afasta na vazante, eles se afastam para os lados de Cabrito e Plataforma, dizia uma das marisqueiras.

Na manhã seguinte a invasão estava consolidada. Toda a vegetação de mangue que ficava em torno da avenida não mais existia. Até mesmo o centro da bacia onde se projetava um promontório de mangues, também estava destruído. Entre os postes da Rua Domingos Rabelo (Porto dos Mastros) dezenas de faixas davam apoio à invasão. Carros de som enalteciam o feito. Foram aparecendo políticos de todos os partidos, principalmente vereadores. O comandante da guarnição, dentro do seu carro, assistia tudo de longe, totalmente impotente. Mandou recolher a tropa ao quartel.


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- Firmino, o Carlos conseguiu nos enganar feio, como se diz por aí. Simulou toda aquela história de que precisava saber como agimos no caso do Uruguai e nos informou categoricamente, para não dizer ao contrário que, ocorreria a invasão do Porto dos Mastros. Deu data e hora.

- Porque ele tinha tanta certeza que denunciaríamos a invasão.

- Porque ele sabia que eu gostava daquele lugar. Eu e o pai dele. Ele sabia que, de alguma forma, eu tentaria impedir que tal acontecesse. Ou falaria com o pai dele ou faria uma denuncia. Como não falei com Cal ele teve certeza que eu faria a denuncia. Por outro lado, acredito que ela tenha um informante infiltrado na polícia. Se não fizéssemos a denuncia ele mesmo a faria. Dava tudo no mesmo.

- E o Cal já está sabendo o que aconteceu

- Ainda não. Chame-o aqui. Ele vai ficar muito sentido, mas não tem outro jeito.

- Meu amigo, seu filho aprontou uma boa. Estou lhe contando antes que você saiba através dos outros. Ele acaba de comandar a invasão do mar no Porto dos Mastros, onde nós pescávamos.

- Sinto muito Bel, aquele lugar era sagrado para nós.

Firmino sentindo o clima desagradável que se formou, interveio: - É seu Bel. A vida continua. Vamos tratar da nossa. Esta semana devemos montar a última casa no projeto inicial.


- Vou ligar para o Rigoni e autorizá-lo a começar a venda das mesmas. Ele já esteve no Banco do Brasil e está tudo certo. O lançamento poderá ser feito em duas semanas. Preparem uma grande festa.

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As vendas do resort foram um sucesso. Todos os domingos o Banco do Brasil disponibilizava uma promotora para venda aos proprietários de lanchas que iam à Maré. O arquiteto indicou dois socialites que ficaram encantados com as casas mar desde que suas compras fossem citadas nas colunas sociais. O próprio Rigoni procurou os jornais e forneceu a notícia. Foram publicadas. Em conseqüência, novos socialites entraram na fila. Uma agência de turismo internacional adquiriu cinco unidades. Diversas empresas adquiriam outras. Já se pensava numa ampliação.

E em dia glorioso, o Resort Casas de Mar foi inaugurado com a presença de autoridades e, principalmente de todos os futuros moradores. Entre as autoridades, o Prefeito da Capital, de Santo Amar Sub-Prefeito das Ilhas e Carlos que tinha sido eleito vereador nas últimas eleições com grande votação no Uruguai e na ilha. A administração do condomínio ficaria com Cal, Firmino e Maneca que tinha sido convidado e aceitou.

Desde então, passaram-se três anos. Os filhos já estavam formados. Casados estavam apenas Alex com Mariana, e Jean com Milena. Mauro, Maria e Carlos continuavam solteiros. Tinham seus namorados, mas nada definitivo. Alex e Mariana moravam em belíssimo apartamento em Patamares; Jean e Milena na Barra em apartamento dado pelo senhor Rigoni, também muito bonito; Mauro e Maria continuavam no apartamento de Ondina comprado ao senhor Rigoni e Carlos quase não tinha residência fixa: vivia se mudando constantemente. Profissionalmente, Alex era uma renomado médico, bem como sua esposa. Tinham consultórios juntos. Jean e Mauro, ambos engenheiros, também se juntaram e formaram uma empresa de construção civil. Maria era dentista e tinha um ótimo consultório dado pelo pai. Milena que era enfermeira virou apenas dona de casa e Carlos agora era vereador.


Certa manhã de domingo Bel se encontrava na varanda de sua casa quando percebeu uma corrida de canoas e saveiros chegando à Maré. Naturalmente, as canoas bem mais rápidas, viam na frente e entre elas uma se destacava. Era a única que tinha duas velas. Buscou um binóculo e identificou a mesma como sendo o “Ilha de Maré”, que lhe havia pertencido. Desceu rapidamente e se dirigiu à praia onde seria a chegada. A embarcação bicou na areia vitoriosa. Da mesma forma como fazia ao seu tempo. Era conduzida por dois rapazes. Se dirigiu a um deles.

- Esta canoa já foi minha.

- Como assim! Meu pai a comprou de um pescador no Uruguai.

- Esse pescador era eu.
- O senhor?!
- Exatamente eu. Hoje moro aqui em Maré. Eu e meu amigo Cal, que pescava comigo.
- Que coincidência! Isto merece uma comemoração.
Bel já ia convidar os dois rapazes para subirem até sua casa, mas achou por bem não fazê-lo. Poderia parecer uma exibição. – Vamos até o bar de um amigo meu, O Ju. Fica logo ali.
Enquanto isto ligou para Cal e Firmino que logo chegaram.
- Cal, meu amigo, veja como são as coisas da vida. Depois de tantos anos, ela vem até nós.
- Verdade! Pensei que não existisse mais. Tivesse sido abandonada numa dessas praias por aí.
- Vocês pescam com ela? Perguntou Bel aos rapazes.
- Não, em verdade, só a pegamos quando tem corrida. Ela é uma grande campeã.
- E onde ela fica atracada?
- Em Aratu, temos iates lá. Fica junto aos nossos barcos.
- Vocês são iatistas?
- Somos. Não toleramos lanchas, essas coisas. O nosso negócio é vela que nem  a Maré.
- Maré?
- Oh. Desculpe. O nome dela todo é “Ilha de Maré”, mas a chamamos apenas de Maré. Fica mais rápido, como ela.
- Quer vendê-la?
- De jeito nenhum. Podemos até emprestá-la, mais ou menos por aí, se o senhor quiser um dia. É só aparecer lá em Aratu em qualquer domingo.
- E nos outros dias os senhores fazem o que?
- Somos médicos, tempos consultórios juntos.
- Tenho um filho e uma nora que são médicos.
- Quem são eles?
- Mauro e Mariana.
- O senhor é pai do Mauro? Não é possível? Hoje é o dia das coincidências. Grande amigo nosso e também sua esposa. Já operamos juntos. Aí já podemos reformular nossa proposta de empréstimo. Em vez de o senhor ir até Aratu, já deixamos a canoa aqui pelo tempo que o senhor quiser. Depois o senhor a devolve, não se esqueça disto.
Risos.....
- O problema reside de como voltaremos para Aratu.
- Lhes deixo lá em minha lancha.
- Lancha. Nada feito. Estou brincando. Desde que eu não a dirija.
Marcos e Paulo, eram esses os nomes dos dois médicos, foram então conduzidos até Aratu por Firmino e o marinheiro, logo após terem recebido a taça pela vitória na regata. Deixaram a “Ilha de Maré” em mãos de Bel. Após um mês, seria devolvida.
Depois da inauguração do resort Bel agora descansava. Estava tranqüilo, principalmente de relação a Calixto. A situação em que ficou o amigo foi muito preocupante. Agora ele trabalhava; moravam juntos da mesma forma como era antes. Agora todos os dias saiam a pescar na canoa que lhes pertenceram. Uma pescaria quase de memtirinha. Noutras ocasiões botavam as duas velas e saiam a velejar até Freguesia. Decorrido um mês, lembraram-se que teriam que devolver a embarcação aos amigos de seu filho em Aratu. Prepararam uma festa na beira do mar onde “Ilha de Maré” balançava graciosamente. Parecia saber que a festa era para ela. Os dois amigos se abraçaram e deram o último empurrão na grande amiga. Saiu a velejar a dois panos, conduzidas por dois jovens pescadores.

FIM






                              



 



    Av. Visc. de Caravelas
                                                                      























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